quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

 

A Carta de Condução


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** Giane - Dominique **


Luanda, capital da província de Angola. Ano de 1974. Tinha 23 anos.

Assim começo mais uma minha estória.
Como já referi em alguns temas só quando fui trabalhar como oficial de diligências para o 7º Juízo Criminal de Luanda, cujo prédio dos tribunais criminais se situava na Rua Serpa Pinto, é que me fizeram sentir a necessidade obrigatória de ter que ter carta de condução.

** Largo e Rua Serpa Pinto **


Talvez por não ter tido até essa data carro próprio e por sempre que tinha que conduzir conduzia sem me preocupar com essa hipótese de ter que ter carta, pois não encarava esse pormenor como sendo obrigatório, o certo é que para desenvolver com eficácia as tarefas de um oficial de diligências tinha que ter o meu próprio meio de transporte. Entrado para o Tribunal em Jan. de 1974 andei durante alguns meses, mais precisamente até inicios de Julho, a efectuar diligências tendo como transporte o maximbas ou táxi. É obvio que esta minha actividade era incompatível com esta minha forma de deslocação, já que a mesma obrigava-me quase diariamente a fazer várias diligências dentro da zona urbana e suburbana a fim de ter que procurar notificar todos quantos estivessem arrolados aos processos que me eram atribuídos.

** Avª Combatentes. Visivel o Café Palladium **


Assim, como tinha que ter um carro, dirigi-me a um stand de automóveis do amigo Gonçalves que ficava na Rua António Enes cruzamento com a Rua António Brandão de Melo e a Rua que ia para o Clube de Caçadores e Miramar, quase ao lado de um pequeno descampado onde existia uma grande figueira. Tentando desta forma ter situado o local do stand, encontrei o carro que me interessava; próprio para pequenas e médias deslocações, pequeno para estacionar, ágil, simpático, mas tinha um “pequeno/grande” senão que contarei mais tarde num outro tema dedicado ao próprio carro. Estipulou-se o preço, 60 mil escudos angolanos (60 contos), forma de pagamento mensal de um valor acertado, papelada assinada e eis-me pronto a sair quando o Gonçalves teve a “infeliz ideia” de procurar saber, por curiosidade, segundo ele, qual o tipo de carta que eu tinha. Obviamente que fiquei surpreso com a pergunta e disse-lhe que não tinha nenhuma carta porque para mim ter carro não era sinónimo de ter que ter carta de condução. Conduzir sabia, por ter estado sempre ligado, durante vários anos, a oficinas, sinais de trânsito conhecia-os de “olhos fechados”, nunca tinha tido problemas de acidentes ou outros, então porque razão é que tinha que ter carta!!!

** Igreja Sagrada Familia **


Está bom de ser ver que o Gonçalves já não me deixou sair com o carro pois tinha amizade e consideração por mim e não queria mais tarde sentir-se “culpado moral” se algo de menos bom me acontecesse, etc., etc., por me ter deixado sair sem querer saber se eu estava ou não habilitado com carta de condução. Que o carro ficava lá guardado até eu lhe apresentar a carta ou algum documento demonstrativo de a já ter tirado. Fiquei atónito, barafustei contra o mundo mas o certo é que o Gonçalves foi implacável.
Na data e ano vivia no Bo. da Caop, Rua Dr. João das Regras (rua do colégio Viriato), e depois de pensar em como me desenrascar daquela situação lembrei-me de ir ter com o amigo Zé Carlos, o da correria louca da estória [clicar »» ”Filme de Terror”], que era instrutor numa escola de condução sita por cima do bowling e ao lado da EVA (Empresa Viação de Angola), mais ou menos perto do Hospital Militar, na zona da Igreja da Sagrada Família.

** Avª Norton de Matos e zona de quartéis **


Assim sendo falei com o amigo Zé e disse-lhe o que se estava a passar …que tinha comprado um carro mas o individuo do stand não o deixava sair pois eu não tinha carta e que só mo entregaria quando eu lhe...blá,blá,blá… e para ele ver o que era necessário fazer pois sem carro não podia trabalhar em condições aceitáveis, já que andar de maximbas ou de táxi era desgastante e dispendioso e também não pretendia perder aquele emprego por uma situação de somenos importância, como era para mim aquela. O Zé riu-se dizendo que isto de ter carta não era como ir ao Colonial, comprar o bilhete e ver um filme de gladiadores ou de cowboys, ou ir ao Bar Cravo e dizer ao amigo Mota para trazer uns finos da Nocal e pratinhos de dobrada e outros, ou ir ao Rialto saborear uns suculentos e carnudos camarões, etc.

** Cervejaria Rialto - frente aos correios **


Que para obter a carta tinha que me inscrever na escola de condução, ir às aulas teóricas, aulas práticas e quando o examinador entendesse que eu estaria em condições de ir a exame faria a marcação, e por aí fora. Se já estava “passado dos carretos” ainda mais fiquei. Era preciso aquilo tudo para obter um documento que me habilitasse a conduzir quando já desde os 14 anos lidava com carros, sabia conduzir e sabia também o que representavam os sinais de trânsito!? Porquê perder tempo tão necessário à minha actividade!?
Mas não tive outro remédio senão inscrever-me, pagar e para espanto disse para me marcarem logo exame, deixando o Zé atónito a olhar para mim como se tudo quanto me tivesse dito eu não tivesse entendido. Mas obviamente que tinha entendido tudo, queria era fazer as coisas à minha maneira, e rápido. Mais uma vez me disse que as coisas tinham que seguir o curso normal, que tinha pelo menos que assistir a "X" aulas teóricas, ter algumas aulas de condução para me habituar ao carro da escola e ele iria fazer os possíveis para que a ida a exame fosse o mais rápido possível. Fui a duas ou três aulas teóricas e práticas, mas sempre a “moer” a cabeça ao Zé para que me marcassem o exame. Eu queria a carta ... ONTEM. Penso que para se ver livre de mim e sabendo que eu estava completamente à vontade na condução e no conhecimento do códio, o amigo Zé mandou marcar o exame teria eu talvez umas duas/três semanas de inscrição na escola.

No dia aprazado apresentei-me com o Zé e mais outros alunos na DGV, sita junto ao Sindicato dos Motoristas e Ferroviários de Angola, e depois de pouca espera entro no carro com o examinador a meu lado e eis-me a percorrer o Largo e Rua de Serpa Pinto, subo até à Avª Brito Godins, desço a rampa do Liceu Salvador Correia, contorno-a subindo, (aquele largo tem a forma do U), conforme foto abaixo.

** Rampa do Liceu Salvador Correia **


Era um ponto estratégico dos examinadores e destreza dos examinados já que devido a rampa na subida ser bem íngreme, fazer o ponto de embraiagem, o ponto morto e o estacionamento entre veiculos não saía bem a muitos alunos e por essa razão naquele local era onde mais se chumbava. Com a prática que tinha de vários anos de condução tudo me correu bem e depois de mais umas manobras o examinador lá disse para regressarmos à DGV, onde se encontrava o Zé e mais um outro instrutor da escola a aguardarem a chegada dos que da escola foram a exame. Chegado, estaciono, o examinador disse-me para esperar que daí a algum tempo iria saber qual o “veredicto”. O Zé pergunta-me se tinha havido algum problema, respondo que tudo tinha ido bem e enquanto outros alunos vão chegando vamos conversando, aguardando os resultados. Passado algum tempo sai a informação … eu tinha passado. Encarei o facto com naturalidade e enquanto uns examinados sorriam de satisfação por terem passado, outros ficavam tristes por terem chumbado.
O que eu pretendia era ter rapidamente acesso a um documento que me permitisse ir levantar o meu Morris Mini Cooper AAV-15-40. Disseram-me que teria que ir levantar uma guia substituta da carta de condução para poder conduzir enquanto a carta oficial não estivesse pronta. Combinei uma jantarada com o Zé e mais uns conhecidos da escola pois, como sempre, tudo era bom motivo para se festejar.
Com a data de 09 de Julho de 1974 obtive a minha carta de condução, carta que achava desnecessário ter pois sabia perfeitamente conduzir e como me comportar na estrada em relação a todas as situações. Era com este género de pensamento que eu funcionava.

Saudações e Inté



Comments:
Amigo Leão Verde:
Obrigada por mais esta crónica que me trás à memória as peripécias que rodearam a obtenção da minha Carta...
09-06-1969 primeira data da emissão para as categorias B 1 e B, que obtive à revelia de meu marido, que, com cara de poucos amigos, quando lhe dizia que queria "tirar a carta" respondia que "só depois de fazeres 50 anos"! Ora, como rebelde que já era com vinte verdes anitos apresentei-lhe à frente do nariz a minha Carta de Condução, tirada no horário laboral, pois também dela necessitava para o cargo que desempenhava na Nova Saratoga à Mutamba. Com o meu trabalho, com o meu dinheiro e sem autorização do meu dono que ele pensa(va) que é/ra!!!
Fiz exame também nada fácil pois fui para o segundo percurso da eleição dos Srs. "Engenheiros" : a calçada empedrada da Fortaleza onde fazer ponto de embraiagem também oferecia os seus engulhos, fazendo com duas ou três manobras a inversão de marcha a meio dessa inclinada e estreita rua, e fui depois estacionar de marcha atrás e a descer, entre dois carros na rua sem saída ao Parque Heróis de Chaves (Rua do Casuno) e tão bem me saí que o examinador disse "Em toda a sua vida, e ainda que com muita prática, nunca mais vai ser capaz de fazer manobra tão limpa!!!" fiquei tão traumatizada que desde então só estaciono em "espinha" áh, áh, áh...
Também tive só tive metade das lições e o Sr. Alfredo, o instrutor já madurão, muito pacientemente me encorajando sempre com rasgados elogios à minha condução e jeito para a coisa, no dia do exame vem dizer-me baixinho: "Célia, logo hoje o carro -wolkswagen carocha - está com a embraiagem muito em cima... tem cuidado! (ainda foi abaixo na inversão de marcha e eu, com uma lata do tamanho do sol que brilhava no firmamento, pois eram 3 da tarde, disse "esta já está, não Sr. Engenheiro: ainda faltam duas para chumbar, não é, mas não vão acontecer!!!" ele sorrio e disse: nem que seja só pela sua descontracção e calma merece passar! (Assim era eu, quando pegava o mundo na palma das minhas mãos!!!)
Mas felizmente, conquanto tenha tido alguns sustos: dois piões em plena subida da Calçada de Carriche, outro na "curva da morte" de Caneças e um pneu rebentado ao km 173 da A-1 a 150 Km/h, nunca causei nenhum acidente nem prejuizos a terceiros...
Saudações e Inté
 
Mano

É sempre bom recordar que em Luanda até se conduzia sem carta e até perguntávamos: «Mas o que é isso?».

:)

Pois, só anos mais tarde é que reparei que, também sem carta, conduzia o "Chevron" do pai e nunca me questionei porque razão o fazia. Conduzia e pronto, era tudo!!!

:))

E foi no longínquo ano de 1975, depois de anos de condução que tirei a dita. Fui contigo e foi um fartote de riso e anedotas no meio daquele pessoal com o "Catatau" ainda desfolhando, tentavam dissipar as dúvidas onde dúvidas já não tinhamos.

As ruas de Luanda conhecíamos de olhos "fechados" (creio que foi o Zandinga que o fez nas ruas de Luanda conduzindo um carro com os olhos tapados) e os sinais? Bem os sinais são como os de hoje, sabe-se alguns, outros só lá estão para enfeite.

:)

Já não sei por onde andei, mas talvez pelos mesmos que tu... e as balas iam assobiando em Julho de 75. Tirei a carta, um ano e dez dias depois de ti 19/09/75.

Abraços
 
Amiga Célia,

é sempre bom termos recordações de momentos únicos que cada um teve ao longo da sua vida, nomeadamente quando jovens e independentes.

Em relação a esse percurso na calçada empedrada da Fortaleza lembro-me, depois de ler a sua intervenção, de na época me terem dito que o percurso que fiz era menos dificil que esse que a Célia fez. Mas está visto que ou num ou noutro percurso ambos passariamos à primeira, pois Leões e Leoas não brincam em serviço :))
Também me lembro agora que o engº que me fez o exame era o mais "temivel" de todos por ser, diziam, muito exigente e de colocar os alunos perante "ratoeiras" como, por ex:, dizer ... vire à direita e haver uma placa de proibição de virar à direita ... E se o aluno caisse na ratoeira estava "feito". Não havia perdão ... e outras do género.
Era alto, fininho e com cara de poucos amigos e creio que seria mestiço. Tudo isto apenas para procurar dar uma identificação visual do "sr. engº".

Quanto à rebelia em relação ao marido a mulher de Angola ou de Luanda, como preferir, já era bastante emancipada, pelo menos as que trabalhavam e a sua remuneração contribuia para as despesas da casa. O conceito de igualdade (alguma) era quase uma realidade. Mentalidades de outros tempos, por força de estarmos a viver num país de largos horizontes e maior que este à beira-mar plantado todas aquelas vezes que sabemos.

Apreciei ler esta sua estória de como obteve a carta de condução, verificando que de uma ou outra forma todos temos estórias para contar sobre situações idênticas.

Saudações e Inté
 
Olá Mano,

»» Mas o que é isso !? «« Boa pergunta, óptima questão (ainda escrevo sem o acordo ortográfico).
Todos nós e alguns nossos amigos conduziamos totalmente à vontade sem nos preocuparmos de saber o que era isso ... de ter que ter ... !! Era preciso conduzir ... conduzia-se. O restante era indiferente.
Segundo os teus registos, como agora referes, fui contigo quando foste a exame e enquanto os outros estavam agarrados ao código nós estávamos na galhofa a contar anedotas. Imperdiveis esses momentos "trágicos" para uns e de completa descontracção para ti e eu a "ajudar à missa" :)). Formas de se estar e de se acreditar. Se se sabia para quê estar a "queimar os neurónios" a estudar!! Respondia-se e aguardava-se serenamente o resultado. Que era e sempre foi positivo :]]

Efectivamente no dia 19 Julho 1975, dia inicialmente marcado para o meu casório, que foi adiado, tiraste tu a tua carta de condução.

Abração
 
Pois eu já não tive tanta sorte, a DGV mandou-me escrever ao Ministro das Obras Públicas e Transportes, e mandei-os marimbar...por ser surda não podia conduzir e o meu patrão da Companhia Angola Belga de Importação e Exportação Limitada (CABIE)no Largo dos Lusíadas, diz ele; laura,tens carta? porquê? perguntei eu... Porque se tiveres eu dou-te um Buggy para fazeres reclame à marca!...quem é que não ia tirar a carta a correr para andar nas ruas de Luanda com os cabelos a esvoaçar ao vento num lindo Buggy montado pela nossa empresa?

Foi em 74, passados meses fui para Pretória e mais uns meses tirei lá a carta...enfim... Para que era a carta se o pai já me tinha deixado conduzir o Land Rover quando íamos pelo mato!ou o mini jeep do serviço dele... já cá canta há 27 anos.

Tiveste de tirar a carta ora pois, tinha de ser.

Beijinho da garota.
 
Olá Garota de S. Paulo,

Como própria questionaste, interrogando ... tenho que ter carta!? Porquê?!
Para que é que a carta era preciso ter se eu (tu) já conduzias o Land Rover??
Essa e outras eram as questões que uma boa maioria dos jovens colocava. Como leste eu questionei, o mano Marius70 também, tu idem idem, e muitos e muitos jovens da nossa geração, os menos "concordatos" com as imposições. E foi querendo relembrar essas rebeldias daquele nosso tempo no "Outro Lado do Tempo" que eu quis aqui trazer ao escrever este tema do Reviver. Só depois de espremido todo o sumo do limão é que nos "rendiamos" às exigências.

Um abração de levantar :))
 
Obrigada pelas suas generosas palavras...
Quanto à rebeldia, pois era, lá isso era, bem rebelde, muito embora até ao limite do possível, pois naquele tempo um homem achava-se no direito de estender a manápula muito para além do seu raio de acção!, mas afoita como eu, bem poucas... Mas com concessões, sem elas, ao arrepio de convenções fui sempre além... eté um curso de direito eu conclui com 42 anos, quando me dizia: para lavar panelas, já tens estudos que cheguem...mas eu sempre teimei e ele lá se foi mentalizando que como era antes quebrar que torcer, nunca quis quebrar e lá muito ao jeito dele lá se foi adptando... hoje enche a boca para dizer "a minha mulher é advogada" mas até ao quarto ano da faculdade foi um braço de ferro constante. 46 anos já lá vão e os mais que Deus nos reservar, hoje os tempos são diferentes, mas mesmo em muitas coisas ainda é um tanto retrógrado... não é má pessoa e agora até está mais condescendente, sabe que temos que enfrentar tempos difíceis, a idade avança, as doenças surgem e temos que nos amparar um ao outro, mas lá que não foi fácil, não foi não... e às vezes agora a mázinha até já sou eu (q.b.)e ele já vai tendo mais paciência comigo, mas eu também lhe forro o estomago com coisinhas boas e docinhos, e hoje em dia isso também é uma boa moeda de troca, não?
Conto com a sua condescendência para estes meus arrazoados despretensiosos, mas que de certa maneira vai neles muito de vivências comuns a mulheres do meu tempo que agora felizmente já são literatura de antanho...
Fique bem
Abraço
 
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