quarta-feira, 16 de setembro de 2009

 

Joana "Maluca"


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** Nelson Ned – Domingo à Tarde **


Hoje irei procurar retratar o melhor possivel, dentro do registo que dela tenho na minha memória, uma das personagens mais populares de toda a Luanda, a Joana “maluca”. Joana "maluca" era vista a percorrer quase toda a cidade, mas sabia-se que percorria com mais incidência o “meu” Bairro de S.Paulo, o Bairro Operário, o Marçal e o Sambizanga (Sambila).
Quando a miudagem a avistava era a gritaria infernal …. “Joana maluca”, “Joana maluca” …. e começavam a atiçá-la correndo de um lado para o outro, fazendo com que ela fugisse ou se lançasse em correria desordenada sobre eles com um pau nodoso a fim de os afugentar. E não se detinha em dar com o pau nalgum miúdo(a) que não fosse mais lesto(a) na fuga. Quando para eles corria lançava pragas terríveis e a dado momento parava, fazia com o pau uma cruz no chão e de seguida cuspia sobre ela. Nunca percebi a razão de tal gesto/acto, nem nunca ninguém mo soube explicar. “Coisas” da mente perturbada de Joana, talvez com o significado que só ela poderia saber.

Mas o que a maioria das vezes a miudagem aguardava era quando, depois de muito “xingada”, a Joana “maluca” levantava as suas pobres e sujas saias e sem cuecas mostrava as suas intimidades, as suas partes baixas, enquanto dizia …”querem ver cinema à borla, querem”…, sendo este gesto a sua "imagem de marca". Esse gesto fazia com que a miudagem ficasse mais atrevida, começando de novo a troçar e a rir dela, e lá tinha a Joana “maluca” que deles fugir. Depois invertia-se o filme. Eram eles a fugir quando ela, já desesperada e não sabendo como deles se desenvencilhar, parava, olhava-os e "partia" para cima deles com a ameaça do nodoso pau. Poder-se-á dizer que cada uma das partes sabia qual o “papel” a desempenhar naquele acto.
Por vezes os adultos intervinham em socorro dela, já que a miudagem ficava chata e não sabia quando parar.
Cabe-me aqui dizer que nunca me meti com ela, assim como meus irmãos. Não por medo ou receio mas pura e simplesmente porque a nossa forma de ser e de estar não era virada para esse tipo de comportamento.



Verdadeiramente nunca soube a razão dela ser “maluca”. Lembro-me de sempre ter ouvido dizer que era uma rapariga atinada, com juízo, e de duas versões para que o deixasse de ser. A primeira versão é que teria sido uma boa, inteligente e esforçada aluna, com grau académico já avançado, mas que de tanto estudar teria tido um esgotamento que a levou àquele estado de demência. A segunda versão foi a de que lhe teria subido um parto à cabeça. Sobre esta versão ouvi ainda dizer que teria tido uma filha e que esta estaria entregue aos cuidados da Missão.
Não sei se alguma das versões será a verdadeira, ou se não terá havido uma outra de todos desconhecida. O certo é que a Joana “maluca” existiu nas condições de vida e miséria que teve e envolta nesse mistério.
Lembro-me que andava sempre descalça, suja, desgrenhada, piolhosa, com roupa estragada enrolada no seu magro corpo, e o rosto sulcado por rugas bem vincadas que atestavam a sua vida degradante e errante, enquanto os pequenos olhos inquietos faiscavam face ao terror que a miudagem e a gritaria lhe infundiam.
Via-a a apanhar beatas caídas nos passeios, nas ruas e algumas vezes alcoolizada. Raramente a vi a estender a mão à caridade, mas quando lhe davam alguma peça de roupa rasgava-a pois era assim que queria ver a roupa no seu magro corpo.
Não havendo miúdos e nalguns casos outros mais graúdos a meterem-se com ela, era uma paz de alma. Passava, recebia ou não o que lhe dessem e seguia o seu caminho.

Aqui começa a estória de um meu momento com a Joana “maluca


Teria uns 14 anos quando esse momento aconteceu. Morava então na Rua do Vereador Prazeres,nº 14, no “meu” Bairro de S.Paulo.

** ano/61.Entrada da casa onde viviamos **
** Um amigo da familia e meus irmãos mais novos **


Estava sentado com a minha irmã mais velha e uma vizinha dela (não me lembro quem) num banco de cimento que ficava na entrada para as casas interiores do Sr. Mota e encostado à pensão da D. Fernanda??. Era o chamado "banco da má-língua”, assim baptizado pelas suas “frequentadoras”.

** foto de 2007. Apesar do ambiente degradado o banco ainda "resiste" e encontra-se alguém nele sentado **


Estavam ambas entretidas a “afiar a lingua” quando vimos a Joana “maluca” aparecer do outro lado da rua, no sentido Sambizanga/Bairro Operário. A Joana viu-nos e parou no meio da rua, talvez “admirada” de não aparecerem miúdos a meterem-se com ela, como era habitual.
Nós observamo-la e estava ela a olhar para nós quando a minha irmã teve uma “ideia luminosa”. Chamou-a, ela veio, e quando estava mais ou menos a um passo de nós diz a minha “atrevida” irmã …
"Oh Joana! Tás a ver o meu mano que é tão bonito e loirinho e não lhe dás um beijo"!!

** a "atrevida" da minha irmã **


Penso que fiquei tão "surpreso" com o que ouvi que nem sequer tive tempo de reagir. A Joana “maluca” chamou um "figo à proposta” e num ápice debruçou-se sobre mim, que continuava sentado, segurou-me o rosto entre as mãos e deu-me um valente e sonoro beijo enquanto minha irmã desatava rir que nem uma perdida. Terá ficado tão surpreendida com o facto que a única reacção que teve foi rir, rir, até perder o fôlego, pois por certo que nunca contou que a Joana “maluca” aceitasse o seu "convite".
Bom, quem saltou e saiu do banco a correr que nem maluco fui eu, pois ao receber o INESPERADO beijo da Joana “maluca” também “levei” em cheio com todos os hálitos e odores que a sua boca e corpo exalavam.
O que sei foi que a partir daquele dia, sempre que via-a a aparecer, resguardava-me o suficiente para não mais me deixar surpreender.
E diziam que era “maluca”. Maluca, uma treta. Naquele dia e naquele momento não o foi, ou não o quis ser :))

Assim, com mais uma das estórias das minhas vivências, lembrei e recordei alguém que foi uma das figuras mais carismáticas e emblemáticas de Luanda, a Joana “maluca” da minha infância.

Saudações e Inté



Comments:
Olá mano

Para além de falares sobre a Joana maluca, retratas aqui com imagens, pedaços da nossa passagem pela Rua Vereador Prazeres, na qual lá estivemos seis anos, mas que foi a rua que mais nos marcou pois foi nela que crescemos.

A famosa pedra do escárnio e maldizer que voltei a vê-la 15 anos depois, a entrada da nossa casa com os manos mais novos ao colo do Zé e a degradação que a nossa rua sofreu, desapareceu por completo a puxada que o pai fez porque com a nossa chegada a isso foi obrigado, tudo não passa agora de um passado que nunca será futuro pois o carmatelo acabará com tudo aquilo como o fez com o Cinema Colonial.

Sobre a Joana maluca. Como bem o fizeste nada mais à acrescentar, a não ser que vi o tal cinema à borla degradante (tenho a impressão que foi a primeira e última vez) ia eu na Paiva Couceiro mesmo em frente ao Quiosque do Sr. Antas.

Coitada da Joana, o rapazio não a deixava em paz.

Mas nesta tua história foi um beijo repenicado dado com hálitos etílicos que fez com que ainda hoje te lembres desse beijo roubado!

:)

A nossa irmã devia também levar um para não se armar em espertinha.

:)

Ah, a nossa rua!... Que saudades!

Abraço!
 
Ahhh, a vossa rua que durante meses foi a minha rua preferida, ahhhhhh...
O que o marius disse é verdade, a mana espertinha devia ter levado um a ver se gostava...mas que tempos lindos.
A Joana lembro-a tal e qual, há pessoas que não consigo refazer os seus rostos, mas, o da Joana está em mim, ela andava por ali sempre e a miudagem gritava que nem doida e acorriam todos a meter-se com ela, eu detestava...Claro que já deve ter ido à vida...Pobre Joana...
Beijinho da garota...
 
gostava estar pra ver a tua cara :)
 
Olá Amigo
Esta moça bonita eu conheci na festa da Sanzala, no passado dia 5 de Dezembro, não foi?
Interessante o seu blog. Feliz Natal para todos.
 
Olá Fernanda,
fico satisfeito por ter visitado o meu blog e ter deixado o comentário acima que "obriga" a uma resposta. Efectivamente a minha irmã desta estória é a que esteve no Aniversário da SanzalAngola. Aquele foi um momento único, mais para mim que para a Joana "maluca".
Retribuo, desejando também que tenha um Feliz e Santo Natal, alargado a todos quantos queira bem.
 
Pois é Leão Verde:
Eu também nunca cutuquei a "Joana" e tinha muita comisareção por ela: feria-me a alma cada vez que passava à minha porta e olhava com ar incrédulo e desconfiado(como cachorro assustado)por eu e meu irmão não corrermos atrás dela e afugentarmos outros miúdos que faziam menção de se aproximar... logo nunca vimos o tal "cinema" e quando ela passava o seu olhar compensava-nos desse nosso "cuidado". Porém era raro ela andar pelo Santa Bárbara e passava sempre só na Avenida que vinha da Praia do Bispo para o cruzamento da Samba, Corimba e Aeroporto. Ainda hoje sinto dor ao lembrar a sua figura tão miserável.
Quanto ao seu beijo, a sua irmã bem que merecia uma corrida daquelas... Mas o que lá vai, lá vai! Eu também tenho umas bem giras do meu irmão que também era fresco, oh! se era...
Cumprimentos
 
Olá Célia,

A Joana "maluca" era uma autêntica andarilha daquela Luanda. Era vista em quase todos os bairros, por mais longinquos que fossem. E o Bairro de Stª Bárbara, onde o Lobo da Costa instalou talvez no inicio da década de 70 um pequeno zoo, era mesmo no quase fim de Luanda. Quantos quilómetros ela andaria por dia!?
Em relação ao beijo foi a recordação dele que me fez escrever o tema na forma em que o descrevo.
Penso que seria agradável a Célia também contar, se possivel, essas estórias do seu irmão. Os temas do blog ficariam mais enriquecidos com momentos de outros personagens que também viveram as suas aventuras, os seus momentos, as suas vivências. Atreva-se a contar esses contares.

Tudo de Bom
 
Sensibilizou-me muito este relato fidedigno de tão grotesca e emblemática figura de Luanda. Vi-a algumas vezes de soslaio e com certo medo. Alguns colegas mais velhos do Salvador Correia às vezes meio a bricar meio a sério ameaçavam a malta mais nova de um dia levar-nos à Joana Maluca para ela nos desflorar.Ou então opinavam que se fossem ricos e tivessem kitár, então nos apresentariam à Marabunta, que eram uma valente loura prostituta que costumava guiar um Cadilac carmim descapotável pelo centro da Baixa Luandense. Mas que contraste!
 
Figura inesquecivel do nosso B.S.Paulo. Conheci-a quando o meu pai abriu a Mariazinha e depoisjá quando o meu velhote (Soares) foi para o Magestic de l959 a 1964.
Outras figuras de S.Paulo,como:Banga Ninito (Motos),Adriano(lutador)Trigueira(Vela) Nando Caçador(Futebol), entre muitos.
Grandes saudades!
 
Em Luanda os negros qd queriam dizer que falavam verdade diziam "fala verdade mesmo, juro, sangue de cristo morra aqui mesmo se não fala verdade", fazendo um circulo na areia e traçando sobre ele uma cruz. O gesto da Joana deveria ter um significado "mágico", neste caso seria uma praga.
 
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