sexta-feira, 13 de maio de 2011

 

R.I. 21 «» a Recruta [ I/III ]


»»Clicar para Tocar««
** Jimi Hendrix »« Purple Haze **


Passavam das 18H00 quando franqueei a porta do Regimento de Infantaria 21, em Nova Lisboa, no dia 31 de Janeiro de 1971.



O jovem civil das praias de Luanda tinha ficado à porta da unidade.


No lado de dentro surgiu o jovem recruta que tinha sido ALISTADO para todo o serviço militar.

Foi assim que terminei o tema Luanda/Nova Lisboa [IV], “odisseia” em quatro actos sobre a viagem e “loucuras” que eu e mais três amigos da vida civil efectuamos quando incorporados para integrar o primeiro turno de Instrução Básica Militar em Nova Lisboa.
Para encerrar este capítulo da m/vida irei procurar descrever como foi a recruta no R.1.21.
Aguardo, à medida que vá escrevendo, que consiga “desalojar” do baú das memórias algumas recordações que façam com que aqui deixe espelhado esse período compreendido entre 31 Janeiro [Domingo] a 3 de Abril [Sábado] de 1971, dia em que fui considerado como “Pronto da Instrução Básica”.



» o inicio «
Entrado à porta de armas fui conduzido ao sargento de dia tendo-lhe apresentado a “credencial de apresentação” [penso que seria este o nome], sargento que chamou um cabo ao qual deu instruções para me conduzir para uma caserna, caserna na qual encontrei alguns conhecidos e amigos da vida civil; o Júlio, o Trindade, Lemos, Fernando [não o da “odisseia”] e mais um ou outro.
O cabo disse-me qual a minha a m/cama, mandou umas bocas “foleiras” e zarpou. Fiquei mais ou menos satisfeito por a minha cama ser a debaixo no beliche mas essa satisfação desapareceu durante a noite quando comecei a “levar” com o pó e outras partículas que caíam da cama de cima. Após uma noite “meia maluca”, desde o colchão a dar-me cabo do corpo [aquilo de colchão só tinha o nome], ao facto de ter que guardar os meus pertenças num cacifo com outro, onde quase nada cabia, como ter de suportar “odores corporais” e “gasómetros” que durante a noite foram “disparados” para gáudio dos autores e de outros.



Na manhã seguinte fomos acordados aos gritos e pontapés nas camas, mandados formar [como se soubéssemos o que era isso] e vestido à civil, todo “amarrotado e partido” e com o corpo com comichões, ouvi uma série de tretas e depois em fila fomos encaminhados para levantamento do fardamento; farda de trabalho e botas de sola em borracha e quico [além da pala dianteira tinha uma pala traseira para cobrir a nuca]; farda de saída, sapatos, boina e gravata; camuflado, assim como o quico, botas de cano, além de meias para todo o género do calçado levantado. Mais uns considerandos sobre o fardamento, o que ele representava, como teríamos que usar, estimar, etc., etc. e o que o exército esperava de nós.

** fardas trabalho, camuflado e de saída **


» a companhia fantasma «
Deram-me um nr de ordem e fui colocado numa companhia cujo capitão era “marado a 200%”. O fulano era tão “passado dos carretos” que designava a companhia como “companhia fantasma”, isto é, antes de estar já estava. Era vê-lo algumas vezes a comandar a companhia para a parada, prepará-la para a revista que o comandante da unidade fazia, só que o homem comandava uma companhia que ainda estava na área da própria companhia a aguardar que ele desse ordem de marcha, mas ele lá ia sozinho …””meu comandante, a companhia fantasma está pronta para a revista””… [era assim que ele apresentava na parada a companhia]. Só que como a companhia era fantasma, não estava visível. A situação era demasiado surrealista, só visto. Nessas “falhas” era o alferes que comandava a companhia até à parada onde o “passado dos carretos” continuava hirto e firme a aguardar a revista à sua “companhia fantasma”.
Nunca entendi como aquele homem ainda estava ao serviço da nação militar.



» os primeiros choques «
O primeiro choque foi ver o que chamavam de comida. Aquilo era uma mistela qualquer que de comida nada tinha, pelo menos para mim e para muitos dos meus companheiros. Mas também vi mais que muitos a “lambuzarem-se” como se aquilo fosse um manjar dos céus.



Conclusão, andei bastantes dias a não comer o suficiente e a minha salvação foi ainda ter algum “kumbu” que tinha sobrado dos “desvarios” tidos quando chegamos a Nova Lisboa, o que possibilitou andar a alimentar-me na cantina até o “ferro” acabar nos bolsos. Nesses muitos dias o que realmente “atacava” era o café da manhã composto por leite mais que aguado misturado com o que parecia ser café ou cevada e dois bons pães que barrava com uma coisa que parecia ser manteiga mas que me ajudava a aguentar até à hora do almoço, onde depois do refeitório ia à cantina. Também tive a ajuda das bolachas, biscoitos e enlatados que tinha levado de Luanda, permitindo assim amenizar alguns “apertos” que passei a ter no estômago.

O segundo choque, este com muito maior impacto que o primeiro, foi com as chamadas instalações sanitárias. Quando pela primeira vez as quis utilizar foi um choque tal que só passados uns seis/sete dias é que reuni condições psicológicas e fisiológicas para lá ir e utilizá-la. Que remédio, não tive outra solução. Nunca tinha visto nada daquilo e só o ter que estar de cócoras [à caçador] e ter que acertar no buraco era demais para mim, além de considerar nojento.

** sanita à caçador **


Talvez por influência destes dois choques, conjugados com os exercícios físicos e desgastes mentais o certo é que nos primeiros oito/dez dias emagreci bastante, entrei em fase de fraqueza e por duas/três vezes desmaiei nas formaturas, tendo ido parar à enfermaria onde rapidamente me restabeleceram. Estava com a moral em baixo e sabendo que só no fim das duas primeiras semanas é que poderia obter licença para sair de fim-de-semana, ainda mais agravou o factor psicológico. A questão passou eu saber se aguentaria até às 15H00 (hora de revista para se obter a tão desejada licença) dessa longínqua Sexta-Feira, para “correr” para a minha cidade … Luanda.
Após a primeira quinzena nunca mais passei um fim-de-semana dentro da unidade. Quando não tinha condições de transporte para Luanda, o meu “destino” era o Bairro de S.João onde entretanto tinha obtido alguns contactos de “permanência”. Mas sempre que podia era a abrir para Luanda.

*em estado adiantado na “elegância"*


» o pelotão «
O pelotão onde estava deveria ter uns 30 recrutas e só me lembro de um nome dos que o comandavam, o do furriel Gandarês, um veterano da guerra que era o individuo mais torto de estrutura óssea que alguma vez já tinha visto. Era mesmo impressionante, todo ele era curvas e recurvas. Havia também um aspirante e um cabo.

** estou por aí **


A recruta foi o que todos já sabem, pelo menos os que a fizeram. Ensinaram o que era uma formatura, o que é e o que se pretende do pelotão, que o pelotão se divide em 4/5secções [dependendo do número de soldados] e os objectivos da instrução. Tínhamos que saber perfilar pla direita, abrir e fechar fileiras, ombro arma, baixar arma, como fazer a continência, marchar, correr, saltar, rastejar, manejar, desmontar e montar as armas, etc,etc.



Nas formaturas tínhamos que estar todos aprumados, limpos, barba feita, firmes e hirtos, ouvindo com atenção tudo quanto nos tinham para transmitir. Deixamos de ter nome para passarmos a ser chamados pelo nr de ordem que nos tinha sido atribuído, ou por tu. Tu isto, tu aquilo.
Quando algum de nós se mexia, se distraia ou era apanhado a fazer “macacadas” era sabido que te tinha que “encher” umas 20/30 flexões ou, no pior dos casos, era-lhe ministrada uma severa G.A.M. [Ginástica de Aplicação Militar] que o deixava todo “roto” e sem vontade de “brincar”, pelo menos enquanto se lembrasse do castigo. A este nível nunca me foi aplicado algum castigo



» carecadas «
Durante a recruta andei praticamente com “carecadas”, isto é, a pente zero. Tudo porque não fazia alguns dos exercícios e o castigo era ir ao Miguel, o barbeiro da unidade. Como se isso me importasse. O importante para mim era não fazer os exercícios em questão e nesse pormenor sempre prevaleceu a minha vontade, para “desespero” do furriel Gandarês e do aspirante do pelotão. Esses exercícios eram o de saltar para o galho e ter que subir e andar no pórtico. Como de tolo nada tinha e de herói de quartel ainda menos, pura e simplesmente sempre me recusei a fazer esses exercícios. Era ameaçado de passar o tempo da recruta preso, da folha ser “manchada” e causar-me problemas no futuro, mas como essas ameaças nunca me convenceram a única solução de castigo que tinham era a de me mandarem ao barbeiro para a “carecada” da ordem, mesmo que o cabelo ainda não tivesse crescido desde a ultima. Por essa razão andei toda a recruta com o “melão destapado”.



Para os que não sabem em que é que consistiam esses exercícios;

» saltar para o galho «
tinha que subir a uma plataforma talvez um pouco acima dos dois metros a contar do solo e saltar para o galho de uma árvore distante da beira dessa plataforma uns 30 cm, mas cujo galho deveria estar num nível ainda superior ao da plataforma em mais uns 50 cm (meio metro). Depois de ter visto um instruendo ter saltado para agarrar o galho, bater com os pés na árvore, cair desamparado no solo e ir todo partido para a enfermaria não era este menino que iria tentar o salto. Para além doutro factor que abaixo referirei.
Esta imagem ilustra bem o exercício em causa.


» subir e andar no pórtico «
conforme imagem para além de ter que subir o pórtico tinha que andar no cimo dele. O pórtico teria uns dois metros e meio de altura, mais o meu metro e setenta e dois somava uma altura de cerca de quatro metros e uns quantos centímetros acima do solo. A largura da trave do pódio teria uns trinta centímetros. Ora estar acima do solo 4 metros e tal [era o que a minha visão dimensionava] e andar naquela estreita largura era um outro exercício para não o fazer pelo mesmo factor do do galho. E creio que se não tivesse esse problema também não faria os exercícios em causa pois de heróis mortos ou entravados estava a história cheia e de forma alguma eu iria pretender aumentar esse fatídico número.


» acrofobia «
Eu tinha uma razão mais que forte para recusar-me a fazer os exercícios acima referidos, mas nunca me passou pela cabeça pedir o documento comprovativo que justificasse ao exército essa minha “impossibilidade” racional de praticar exercícios daquele género. Pura e simplesmente eu sofria de acrofobia [acrofobia é uma doença psicológica onde se sente medo de qualquer altura, mesmo que em lugares protegidos onde não existe perigo real de se cair. Pode-se entrar em pânico, sentir-se tonturas e não se consegue olhar para o chão quando se está em locais altos, havendo necessidade de rapidamente se retirar desse local].



Para debelar esse problema tinha andado uns anos antes e durante alguns meses em tratamentos que melhoraram substancialmente esse distúrbio psicológico, pois tempos tinham havido que nem sequer conseguia estar no cimo de uma cadeira e saltar para baixo. O que meus olhos viam era um abismo infinito ao mesmo tempo que sentia uma atracção pelo mesmo, isto é, a não saída imediata do local poderia provocar com que me lançasse de forma irracional para esse abismo.



Como não tinha o tal documento comprovativo e mesmo quando fui à inspecção nem me lembrei desse factor, eu, para os instrutores, tinha era “miúfa”.
Como esse epíteto nunca me incomodou eles que dissessem o que entendessem dizer que isso não faria com que eu fizesse o que não queria fazer.
A exemplo de muitas situações na minha vida o problema não era meu, mas sim dos outros.

[ continua ]



Comments:
Olá mano

Não sabia que eras um 'fantasma' pertencendo a uma companhia fantasma e que marchavam ‘fantasmamente’ pela parada. Há cada doido.

Essa da acrofobia também me era desconhecida, assim como o tratamento que fizeste. Como tu, também o abismo é-me ‘convidativo’ mas nunca tive problemas tanto no galho como no pórtico.

A vida de recruta é, como o sabemos, o pior da tropa. Situações novas, comida que do peixe só se via a carcaça (era o peixe a sorrir, dizíamos), as mistelas inicialmente intragáveis mas que depois acabado o ‘kumbu’ lá teríamos que ‘marfar’. O vinho que, segundo as más-línguas, tinha cânfora (?) para evitar os excessos libidinosos, as sanitas, sendo à caçador, era uma forma de evitar a transmissão de doenças. Isso também nos ajudou a suportar tudo o que de mais veio a seguir.
Era um romper com a vida civil junto à família a que estávamos habituados e a preparar-nos para uma outra vida, mais agressiva e onde, as nossas dificuldades, teríamos que ser nós a resolvê-las. E resolvemos. Fomos os únicos, porque estivemos onde mais ninguém dos nossos esteve.

Abraços!
 
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