terça-feira, 30 de dezembro de 2008

 

As Passagens de Ano no Outro Lado do Tempo


Hoje farei um percurso, mesmo que sucinto, por uma qualquer Passagem de Ano em Luanda. Poderei, num ou noutro caso, alargar a m/descrição por me ser particularmente emocional, mais envolvente à génese humana.
No fundo serei sempre o potencial protagonista do tema.
Aguardo que estas minhas memórias sejam acolhidas, lidas e entendidas como sendo as de um qualquer de vós. Sem preconceitos, sem malícias perniciosas.
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Porque o tempo está frio e a noite vai alta, nada melhor que começar a escrever o tema com aquecimento ao som bem ritmado dos Águias Reais, com a sua “Bazooka



Depois cada um escolherá o seu itinerário, dos muitos com que ilustro o tema.
Poderemos embalar por aí fora e acabar, pela manhã bem dentro, numa praia de areias aquecidas e águas tépidas. Ou então, alguém estar de tal forma bem "chupado" que nem uma grua conseguirá removê-lo do local onde tenha "aterrado".
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Regra geral as passagens de ano tipo família são passadas nos clubes recreativos e/ou desportivos, ou duas ou três famílias juntam-se na casa de uma delas, desde que tenha quintal para se montar a farta e comprida mesa e espaço para depois se dançar até o Sol raiar. Cada família leva o farnel (o que entenda), uma ou outra bebida das chamadas brancas, e a família anfitriã fornece as cervejas, vinhos ou refrigerantes, cujos custos são depois divididos por todos. Por vezes tal não acontece, pois só o prazer de receber e conviver faz com que o anfitrião não "ligue" a esse pormenor.

** convívio de passagem de ano de quatro famílias **


Também algumas discotecas, boites de hotéis, dancings e restaurantes se proporcionam para este tipo de iniciativas.
Nos musseques - e alguns deles bem conheço por os palmilhar e percorrer desde a infância até à idade adulta -, em recintos improvisados (na maioria dos casos), a passagem de ano também se faz ao som e ritmo das batucadas, do kissange, do gira-discos de discos de vinil que um ou outro mais privilegiado possui.
A bebida é de quase todo o género, desde o marufo [vinho de palma e tido como refresco se bebido quase de imediato à sua extracção, mas que após algumas horas de fermentação adquire um poder alcoólico acentuado], até ao kaporroto [uma espécie de aguardente caseira, mas péssima para a saúde, já que a sua fermentação é acelerada com a ajuda de pilhas eléctricas], passando pela Nocal, Cuca, ou pela recente (anos 70) EKA, ajuda a "esquecer" a "noite longínqua" e os sons saídos de gargantas em rostos que começam a estar toldados pelo alcool ecoam pela noite, entrando pela madrugada, como lamentos de um povo genuínamente à terra ligado. Depois lá vem a maka, a confusão, a policia e a esquadra.
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Assim, meus amigos, convido-os a percorrerem este meu itinerário, contado na primeira pessoa, e cada um fará a sua paragem no local onde estejam os seus familiares, os seus amigo(a)s, as suas memórias.
Que tal começar pelo Desportivo de São Paulo! Pois já lá estou dentro e no palco actua o Urbano de Castro com a canção “Mulata



Vejo o ambiente, converso um pouco com os amigos Fernando, Zé, Henrique, São, Filó, Elsa, Vitória e outro(a)s. Dou uma pestanita a uma garina que por lá anda, ela encolhe os ombros e olha-me por cima do ombro com desdém. Bebo uma Nocal e como o ambiente ainda não aqueceu (aquela canção não ajuda nada), dou meia volta e vou até à
Liga Africana (Vila Clotilde). Aqui o ambiente é um pouco mais snob, mais intelectual, de popular tem muito pouco, a música não me agrada e estou a caminho do
Grupo Desportivo da Terra Nova. Já vejo mais movimento, mais Zundapps, NSUs, Florets. Digo ao porteiro que apenas quero dar uma espreitada para ver o ambiente. Como sou já conhecido de outras andanças, deixa-me entrar mas adverte-me que se for para ficar terá que me cobrar o ingresso. Tranquilizo-o e vou até ao recinto de baile. O bar, que fica ao fundo da entrada do clube, está apinhado de jovens. A cerveja começa a rolar pelas gargantas, fala-se em tom alto.
Encontro um ou outro amigo, pergunto como estão as coisas e a resposta é … vê! Mando-os dar uma volta e no recinto já estão uns pares a dar ao corpo, mas nada de transpiração. Como habitualmente neste clube as garinas estão quase todas sentadas a um lado, no caso presente acompanhadas de pais e familiares, e do outro juntam-se aos magotes os boys a “filarem-nas”, mas sem avançarem. Tretas, penso eu. É só copos.
No palco e com boa pedalada, actua o conjunto Jovens do Prenda, com o ritmo de “África Merengue”.



Saio e começo a pensar que estou a ficar sem tempo para encontrar o meu local ideal. Mas como decidi que hoje, por enquanto, não farei escala em lugar algum, continuo e, sem dar por isso, eis-me a caminho do
Clube "Os Belenenses", na Samba.



Mal chegado e já escuto os sons de Bana e o Conj. Voz de Cabo Verde na coladera “Mexe mexe”.



No recinto, na cavaqueira, vejo o meu "velho" amigo Vasconcelos acompanhado da sua linda filha Esperança e mais uns amigos.
Percorro o olhar pelos presentes e reparo na garina mais IN da Samba, a Bia. Sorrio, cumprimento-a com o olhar, pois já está toda "enroscada" na passada da dança. Conheço muitas miúdas, mas nenhuma como a Bia. É simplesmente do outro mundo.
A Esperança lá se desenvencilha do pai e com aquele olhar de olhos verdes felinos, vem ao meu encontro.
Esperança é uma moça mestiça, das mulheres mais belas que até aí tinha conhecido.
Sabe do meu interesse pela Bia e faz-me uma marcação cerrada sempre que vou ao clube. Como geralmente vou pelo menos uma vez por semana, para a cavaqueira, para um jogo de cartas, e para fazer a "corte" à Bia, alguém lhe diz, aparece e não arreda pé. Gosta de mim, o "velho" Vasconcelos estima-me e aprova, mas eu não quero que ela se comprometa comigo. Pura e simplesmente eu sou um "animal livre" e ela não merece que a "aprisione". Por diversas vezes lhe disse isso mas ela sempre acredita que a qualquer momento eu me irei regenerar e quer ser ela a primeira a estar junto a mim nessa estabilização.
O olhar faísca por me ter visto sorrir e cumprimentar a que considera ser a sua "rival", enquanto que eu "quase" não tinha "dado" por ela. Obviamente faço o meu jogo.

Estou encostado ao balcão a servir-me de uma Nocal que alguém tinha mandado oferecer-me. Maliciosamente e agora com o olhar brilhante, limpido e de promessas sem fim, envolve-me com o seu corpo, o seu perfume, os seus odores de fêmea apaixonada.
Seus braços circundam minha cintura e seu corpo, bem encostado ao meu, convida-me para a dança. Resisto, pensando que a coladera de Bana estará no fim e será a minha "salvação". Sorrio, faço um compasso de espera, beijo-a na face ao de leve e oiço os últimos acordes do "Mexe mexe". E sem ter que me "mexer" senti-me "salvo" daquele "aperto", tendo em atenção que a Bia era o meu propósito.
Digo-lhe ao ouvido que não vou ficar pois tenho um trajecto determinado e quero-o cumprir (embora eu não soubesse qual). Vejo o seu sorriso luminoso de olhar gaiato a ficar triste, os seus braços a alargarem-se de meu corpo e um suspiro vindo das profundezas da alma a inundar o meu ser. Desejo-lhe um bom ano e saio perturbado do Clube "Os Belenenses".

Cá fora respiro com ansiedade. Fico com a quase certeza que em definitivo "matei" a esperança que a Esperança tinha em mim. Recobro o fôlego e momentaneamente sem saber para onde ir. Talvez para o Morro da Samba e ver bem mais de perto as estrelas que no firmamento brilham com intensidade. Talvez para a Corimba e ver o mar a lamber mansamente as areias da praia deserta.



Mas esta noite tenho uma missão, um itinerário, e ele ainda não está totalmente cumprido. Passo pela casa de fados "A Muxima", onde verifico que a passagem de ano já tinha acontecido pelos festejos e barulhos envolventes.
Acelero e eis-me no
Clube da Praia do Bispo. Aqui o ambiente está ao rubro.
Há largos minutos que se festeja a passagem de ano. Champanhe, serpentinas, apitos, abraços, gargalhadas e uma inconfundível alegria dão o mote ao acontecimento.
No palco, o conjunto Nelson Et Leurs Jeunes toca freneticamente o "That What Want" dos The Square Set.



Deixo-me envolver por aquele ambiente fantástico, como a querer reparar a situação anteriormente vivida no "Os Belenenses". Embrulho-me naquele mar de gente, rodopio, danço à toa, cumprimento e abraço gente que me cumprimenta e abraça. De relance vejo um ou outro rosto conhecido, mas não há tempo para conversas. Ainda falta mais caminho, mais estrada, mais asfalto.
Percorro "doidamente" a Av. da Praia do Bispo. Pelo caminho oiço barulhentas músicas vindas das casas, dos quintais, da ilha dos pescadores.



Cruzo-me com inúmeros carros que com latas amarradas aos pára-choques circulam pela Marginal, a caminho da Ilha uns, outros a percorrerem a Av. dos Restauradores/Baleizão/Polo Norte. Na curva Praia do Bispo/Marginal ainda tenho tempo para ver que o Clube Nun’ Álvares e o Restaurante Restinga fervilham de gente, de luzes luminosas, de festividade.
Luanda festeja mais uma Passagem de Ano. Festeja mais um ano de conquista na árdua luta de tornar Angola um país promissor, um país autonomista, desde que o deixem ser. Oiço o estrondear de foguetes, embora eles estejam há muito proibidos devido à situação de guerra.

Confesso que neste momento estou hesitante. Se seguir para a Ilha e curtir todo o ambiente que deveria estar a acontecer no Farol, aproveitar e ir à "Casa Portuguesa" ou ao "Marítimo da Ilha", ou simplesmente virar para a cidade e ir até ao "Clube Ferroviário". Sinto que este meu itinerário estará no fim e mentalmente sei onde o irei terminar. Por certo que não é no Ferrovia.
Estou a fazer esta passagem de ano ao volante do meu Morris Mini Cooper AAV-15-40 e começo a ficar cansado.



As emoções estão a ser muitas e ainda sinto o peso do olhar triste, decepcionado e sentido da Esperança.
Procuro um lugar para estacionar junto ao "Ferrovia", mas está tudo super ocupado. Solução encontrada ... estacionar no parque dos autocarros.
Tarefa superada, já que junto à mão que cumprimenta o guarda foi mais qualquer coisa.
No Clube Ferroviário entro sem algum impedimento apesar de estar completamente lotado. A parte inferior está repleta de foliões, a farra está ao rubro. Subo até ao primeiro andar e no vasto salão, completamente cheio, dança-se a Cumbia "La Pollera Amarilla", tocada pelos "Os 5 de Luanda".





Embrenho-me na multidão que rodeia a área de baile. Não procuro ninguém, não busco alguém, mas ao mesmo tempo quero encontrar alguém que me anime, que me acompanhe, se possível, até ao meu último destino deste itinerário de passagem e entrada de ano.
Vejo, a que mais tarde soube chamar-se Eduarda, a Luísa, a Graça e mais, mas todas já bem acompanhadas. Encontro uns amigos, o Tony, Ferreira, Augusto, bebo uns copos e começo a pensar em alterar a ideia anterior e decidir a ficar por aqui. O ambiente está óptimo, os meus amigos dizem-me que há umas garinas desgarradas, mas já por eles controladas, e com a possibilidade de se poder alargar o grupo a mais uma ou outra, desde que eu alinhe. Pondero a situação, olho para o relógio. Pouco passa da 1hora. Digo que sim, que fico.
Apresentam-me às suas recentes conquistas que, por sua vez, me apresentam a duas amigas ainda sem par. Uma é ruiva, bem sardenta, olhos acastanhados e bonitinha. Mora na Cidade Alta e tinha sido "arrastada" pelas amigas para o Ferrovia.
Engraço com ela, talvez pelo ar tímido e de bem pouco à vontade. Interessante, a uma hora destas e sai-me uma género “colegial”, penso para com os meus botões.
Mas a outra apresentada logo remeteu aquele meu primeiro interesse para segundo plano. É morena, cabelos negros como o carvão, olhos escuros, profundos, insondáveis, enigmáticos. Chama-se Olímpia e é a sedução em pessoa. Uma "loba", penso logo.
E entre a "colegial" e a "loba" preferi a última.

Conversamos, bebemos, dançamos, e penso novamente em sair dali. Apenas com a "loba", pois o grupo para mim já era. Bastava ela querer e saíamos os dois. Disse-lhe das minhas intenções, se ela quer sair comigo. Diz que sim. Só teria que se despedir das amigas. E fê-lo sem problemas. Também disse aos meus amigos o que estava a suceder e, embora surpreendidos pelo "rápido acontecimento", deram-me umas palmadas nas costa e desejaram-me "felicidades".
Fiquei com a impressão que as outras garinas ficaram a pensar do que é que eles estariam à espera para saírem também.
Saímos já enlaçados e no percurso até ao meu "bote" disse-lhe estar a querer ir até outro lado, até outro Clube, pois ainda era cedo para outras demandas.
Afinal eu quero acabar este meu itinerário no clube onde sou sócio, onde me sinto como em casa, embora não seja oriundo da região portuguesa que aquele clube representa. Concordou e pareceu-me que olhou para mim de uma outra forma, com mais interesse, com mais "carinho". Afinal eu estava a demonstrar que não pretendia uma conquista do género "tiro e queda". Havia tempo e tinha-se que gozar todo o tempo que o tempo colocava à nossa disposição.

Sem pressa avanço novamente pela Marginal a caminho da Mutamba. A saudável "loucura" de festejar o novo ano continua. Chegado ao Nacional procuro e consigo um lugar para estacionar. Seriam umas 2 e pico horas da manhã.
Abraçados, caminhamos um pouco e entramos no
Clube Transmontano de Angola. Encontrei logo amigos e amigas das noites dançantes de Sábados e tardes de Domingo. O Clube estava à cunha e a sala de baile repleta. Mas para mim há sempre um lugar à minha espera. Falei com quem tinha que falar e arranjaram-me uma mesa. Apesar de jovem eu sou um homem da "casa" e os dirigentes e alguns associados, assim como empregados, nutrem bastante simpatia por mim.
O conjunto A Teima, direi que é quase o conjunto da casa, está a findar de tocar uma música qualquer. Sentamo-nos e logo uma garrafa de champanhe e um bolo-rei foram colocados na mesa. Brindamos ao novo ano, ao nosso encontro, às ambições de cada um. Não brindamos ao futuro para os dois em conjunto. Sabíamos que iríamos viver aquele presente/futuro imediato. O Futuro/futuro não cabia naquele momento, naquele brinde.
Parecendo que de propósito para aquele momento "mágico", o conjunto "A Teima" toca e dançamos o "Adoro", de Armando Manzanero. Estava na hora das músicas envolventes, apaixonadas, de juras de amor, de amor de ocasião.



Outras músicas dançamos, outras músicas ouvimos. Antes do fim do baile fizemos o nosso fim de permanência naquela sala. Cerca das 5 da manhã descemos a escadaria dou à chave no meu Morris Mini Cooper e arranco até ao Hotel Costa do Sol, Km 7 da Estrada da Corimba.



Descemos até à praia resguardada, entrelaçamo-nos e depois deitados vimos o maravilhoso nascer do Sol. Só tarde adentro regressamos a Luanda. Um encontro para o inicio da noite deste primeiro dia de um novo ano tinha sido combinado.

Este é o meu itinerário para vós.
Percursos idênticos ou quase iguais ao que descrevo, por certo alguns dos que lerem este tema os terão tido. Se os tiveram e os souberam viver, souberam provocar magia, souberam ser mágicos.
Pois essa foi a magia daquela minha vida vivida e sentida. Daquela vida que um dia eu vivi.
Com todo o esplendor dos seus sons, cores, cheiros, tonalidades, odores.
Uma riqueza que ficará para sempre comigo. Uma riqueza de vivências que nunca mais as tive, mas as quais ninguém jamais mas poderá tirar.

*** A TODOS UM BOM 2009 ***

***** E FAÇAM O FAVOR DE SEREM FELIZES *****


Saudações e Inté




domingo, 14 de dezembro de 2008

 

Ambriz «» Natal 1971


** Schubert - Serenade **


Como estamos em época natalícia, vou retroceder ao ano de 1971 e relembrar o primeiro Natal não passado no seio da Família e ao mesmo dar as primeiras pinceladas sobre o inicio da minha actividade militar até ao evento hoje a relembrar.
Recenseado pelo concelho de Luanda, fui alistado em 24 de Julho 1970 e o resultado da inspecção sanitária da junta de recrutamento foi de “Apto para Todo o Serviço Militar”. Incorporado em 31 de Janeiro de 1971, rumei a Nova Lisboa para o R.I.21 como recrutado.

** Entrada do RI 21 **


Acabei a recruta no dia 3 de Abril e regressei a Luanda para o ATMA (Agrupamento de Transmissões de Angola), Bairro Salazar, onde entrei no dia 17 de Abril para tirar a especialidade de Radiotelegrafista.

** Juramento à Bandeira **


Em Agosto, acabado o curso de radiotelegrafista, em que fui o 2º do curso, segui com guia de marcha para o R.I.20 [Luanda], onde dei entrada no dia 21 desse mesmo mês. Pelo caminho fui escolhido e promovido no dia 06 Junho a 1º cabo com a classificação de dezasseis valores e vinte e dois centésimos, após testes realizados.

** o pelotão de que fazia parte no ATMA **


Pouco tempo estive no R.I.20. O Regimento de Infantaria 20 (R.I.) tinha decidido criar o Centro de Instrução do Ambriz. Por ter sido o 2º do curso, fui destacado para reabrir e montar o Posto de Transmissões, então inoperacional. Comigo ia um cripto (não me lembro do nome), dois radiotelefonistas (Abelha e Morgado) e o Jorge (amanuense), além de outros militares, outras especialidades e demais patentes.

** com Jorge, Abelha e Morgado **


A preparação da deslocação Luanda/Ambriz foi o primeiro “choque” militar que tive. Uma forte e penso que bem organizada escolta militar fazia a protecção ao MVL (Movimento de Viaturas Logísticas) que se formava na Manutenção Militar, na Estrada de Catete, quase junto ao Cemitério Novo. No meio dos camions seguiam também alguns veículos ligeiros. Um Unimog à frente, dois nos meios das viaturas civis e a fechar um outro Unimog. Tudo artilhado, todos aparentemente atentos, embora ainda estivéssemos em Luanda, mas também era preciso fazer algum “filme” para justificar os meios. A coluna movimentou-se e lá fomos a caminho de Ambriz. A primeira alteração à quietude em que seguia o MVL deu-se a seguir à Fazenda Tentativa, após Porto Quipiri. O MVL dividiu-se em duas colunas; uma seguia para Ambriz com a escolta militar ida de Luanda e a outra seguiria, como primeiro destino, para Ambrizete, com escolta vinda de Freitas Mornas.

Mal sabia que daí a alguns meses eu também faria parte de alguns MVL que passavam por Zau-Évua, quando me “desenfiava” para Luanda.

Ambriz era uma vila que ficava cerca de 180 Kms a Norte de Luanda. No trajecto, a partir da Fazenda Tentativa, só vi numerosos bananais com as mais variadas espécies de bananas, caniçais e canas de bambu. E capim bastante alto, diria mesmo que alto demais para uma zona declarada de alguma convulsão de guerrilha.



Chegado a Ambriz reparei, situado à esquerda de quem entra na vila, num restaurante em madeira, onde comi várias vezes, durante os meses que lá estive, longos, saborosos e suculentos bifes que, por serem “descomunais”, eram servidos em travessas, vindo as batatas fritas num prato à parte. Como primeira impressão Ambriz era uma vila de sentido único, pois só visualizei uma larga Rua como sendo a Principal, mas com trânsito nos dois sentidos sendo o separador composto por frondosas árvores. Mas depois verifiquei que tinha umas outras ruas laterais e longitudinais e que era uma vila simpática, limpa, aberta e de construções consistentes.

** Rua Principal **


Os primeiros tempos não foram de muitas incursões na vila e sanzala envolvente, já que a prioridade era a montagem do Posto Rádio das Transmissões e tudo teria que estar preparado para que o Centro de Instrução pudesse receber os primeiros recrutas. Durante a minha permanência em Ambriz raramente “pisei” o aquartelamento, já que a minha presença era mais no exterior que no interior do quartel. Eu, o cripto, o Abelha, o Morgado e o Jorge ficamos "aquartelados" numas instalações anexas a uma vivenda na Rua Principal onde ficou instalado o gabinete do Comandante do Centro de Instrução, Major Santiago Maia, a secretaria (Jorge) e o Posto Rádio.

** a vivenda do Comando **


Face a esse “pequeno/grande” pormenor do Posto Rádio estar instalado onde estava, a disciplina militar não era devidamente aplicada e podia usar barba crescida, andar à vontade quanto ao cabelo, vestir-me à civil, sair e entrar sem controlo algum. Não que fizesse isso, mas poderia fazê-lo sem muito incómodo.
Como a minha missão era a destinada, também não executava qualquer tipo de actividade operacional ou de serviço. Eu era, pura e simplesmente, um “aramista”. “Aramista” era a designação dada àqueles que não deviam, devido à especificidade da sua especialidade, sair da zona protegida. Neste caso só os criptos e os radiotelegrafistas estavam impedidos de executar qualquer outra actividade que não a sua, e toda essa dentro da zona de segurança.
Os militares do aquartelamento apenas faziam escoltas ao MVL entre Ambriz e Luanda e penso que também davam alguma protecção às fazendas de economia local.
Após testes e experiências o posto de transmissões ficou devidamente instalado e operacional. A partir daí Ambriz passou a ser o meu, e dos meus companheiros de jornada, paraíso tropical. Forte empatia com a população civil e a mesma não se fez rogada a conviver de forma amistosa comigo e com os meus companheiros, e mais tarde com os recrutados do Centro de Instrução. Da bastante conversação tida com a população civil constatei que foi de bom grado para eles, e do comércio em geral, a implementação do Centro de Instrução naquela Vila.
As dezenas de jovens militares animavam a vila, faziam aumentar o negócio das poucas casas de comércio e café existentes, o cinema começou a exibir filmes (penso que era de quinze em quinze dias) e estava sempre cheio, o ringue de futebol de cinco quase sempre ocupado e numa outra “vertente” a sanzala também começava a sentir a “animação” daquela juventude.
Ambriz também tinha uma estação de correios com telefone público, o que era muito agradável, já que permitia ligações a familiares, namoradas ou amigos.

Mas para mim a praia era o que de melhor Ambriz me proporcionava. As nossas instalações ficavam bem contíguas ao mar. Era só colocar a toalha ao ombro e em fato de banho sair rumo à praia de mar límpido, de águas mornas, areias desertas, diria mesmo em estado primitivo. E no entardecer mágico do cair do Sol escrevi os meus primeiros poemas dedicados a Mitsuko Sassaki Gomes, uma brasileira residente no Brasil, filha de pai português e mãe japonesa. Poemas escritos nas zonas rochosas da costa. Na enseada li muitas das cartas que ela me remeteu. Brisas refrescantes vindas do mar sossegavam o meu ser, os meus sentidos de jovem desperto para a vida.
A praia era, regra geral, frequentada apenas por nós, os militares, e muito raramente pelos civis e ainda menos pelas lindas (poucas) donzelas existentes na Vila.

** uma praia de Ambriz **


Pouco tempo depois de lá estarmos, ainda o Centro de Instrução não estava totalmente operacional, começaram a aparecer aos fins-de-semana alguns estudantes, filhos dos comerciantes e fazendeiros residentes. Verifiquei que entre os jovens militares e os jovens civis estudantes não havia empatia, não havia aproximação. Nalgumas situações cheguei a notar alguma animosidade por parte deles. Talvez devido a algum tipo de ciumeira, já que alguns dos que namoravam garinas residentes na Vila [e esses eram os que apareciam], sentissem que os jovens militares podiam tentar “ocupar” o seu lugar junto do coração da amada, por ausência do amado.
Como acima já referi, após a instalação do posto de transmissões fiquei praticamente sem nada mais para fazer, a não ser “ver” o tempo a passar. Assim comecei a ter mais tempo para ter opções; uma era, após o pequeno-almoço, ir para a praia, regressar para almoçar, tomar um café num dos cafés existentes, bater uma sorna e por volta das quatro/cinco horas disputar um jogo de futebol de cinco, ou não vinha almoçar e ficava na praia até ao entardecer, contemplar o pôr-do-sol que era lindíssimo, deslumbrante.

Regra geral almoçava ou jantava no tal restaurante que vi quando entrei em Ambriz.
Pagava a uma lavadeira que me levava a roupa para lavar e passar. Estava, como já o disse, num paraíso. O único senão era a horda de mosquitos que por vezes conseguiam atravessar os mosquiteiros e lá deixavam a sua marca.
Considero que Ambriz foi uma magnífica estada para mim e meus companheiros. Foram bons os tempos que lá aconteceram. Luanda quase que já estava esquecida, Luanda já era. Aproveitei aquela acalmia e serenidade do lugar para “curar” alguns desamores tidos em Luanda. Por isso senti que não devia desperdiçar aquele bom momento que a vida militar me estava a proporcionar.
Estando limitado àquele espaço, por estranho que possa parecer nunca tentei ir a Luanda durante os meses que passei em Ambriz. E foram alguns. Talvez fins de Setembro de 1971 até Fevereiro de 1972, mês em que regressei ao R.I.20 [Luanda] e fui incorporado na CCAÇ 105/72 com destino a Zau-Évua, linha Ambrizete/S.Salvador.
Em Ambriz pura e simplesmente “desconhecia-se” que havia guerra em Angola. Talvez por isso é que algumas altas patentes militares decidiram lá instalar o Centro de Instrução. Não havia “guerra” mas contava a 100% para o tempo de serviço militar, já que era considerada como zona operacional. E assim “construíam” a sua folha de serviços na “defesa” da Pátria.

Foi em Ambriz que passei o primeiro Natal fora do convívio da m/família. E foi essa a razão deste meu Relembrar.

Como mencionei, existia bastante empatia entre a população civil e os militares.
Dentro deste panorama de bom e sadio relacionamento, houve uma família que me “adoptou”, com quem convivi de forma séria, respeitável e educada. Fui inumeras vezes convidado para almoçar e/ou jantar no seu lar, na sua casa, que ficava ao fundo da Rua Principal, ao lado da entrada do quartel.

** aspecto da entrada do aquartelamento **


Primeiramente convivi com o simpático casal. Depois conheci e convivi com os seus filhos quando os mesmos regressaram nas férias de Natal. Eram estudantes universitários e estudavam em Luanda. À distância de 37 anos penso que eram três os filhos. Dois irmãos e uma irmã. Do nome da família já não me lembro. Apenas me lembro que um dos filhos se chamava Emanuel. Não sei a razão de apenas ter fixado este nome. Mas recentemente tenho ouvido esse nome várias vezes e fiquei a saber que Emanuel significa "Deus Connosco".
Nesse ambiente de perfeita harmonia familiar, já existente com os pais, e depois consolidada com a presença dos filhos, passei com eles o meu primeiro Natal fora do convívio da minha Família. Um Natal diferente dos passados por mim até àquele. Muita religiosidade, muita serenidade, muita delicadeza. E “sei” que esse ambiente não era produzido por eu estar com eles. Senti que essa era a sua forma de se enquadrarem no espírito de Natal. Não me lembro de ter visto qualquer adereço alusivo à quadra festiva. A toalha era de linho branco, não tinham presépio, árvore ou lampadazinhas a piscar. Ambiente muito sóbrio, de muito recolhimento, de muita espiritualidade.

Foi nesse convívio sadio que me lembro de ter ouvido a primeira de muitas vezes a Serenade de Schubert. Melodia que ficou para sempre na minha memória gravada.
Hoje, ao corporizá-la como melodia de fundo para este tema a relembrar esse meu Natal passado com eles, faço-o com o eterno agradecimento por terem permitido que eu, um perfeito desconhecido, entrasse por algumas semanas naquele “seu” mundo, considerando-me como se um deles eu fosse.



A ESSES MEUS CAMARADAS DE AMBRIZ E A TODOS QUANTOS PASSEM POR ESTE TEMA, DESEJO UMA QUADRA NATALICIA DE BEM ESTAR, DE SOLIDARIEDADE, DE COMPANHEIRISMO E DE MUITO AMOR FRATERNAL E ESPIRITUAL

Saudações e Inté