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sexta-feira, 19 de novembro de 2010 Expulso [ I/II ]
Ano de 1977. Luanda, capital da Republica Popular de Angola
Sábado, 19 de Novembro Estou só. Dois anos sobre a independência de Angola se passaram. Minha mulher tinha embarcado para Portugal no dia 15 de Abril. Está grávida e não há condições, em nosso entender, para em Luanda ter um parto sem problemas. Em dois anos as provações e privações haviam sido muitas e encontrava-se fisicamente débil para que a gravidez se desenvolvesse com naturalidade. Em Portugal iria encontrar as condições necessárias quer a nível de alimentação, quer a nível da paz psíquica, quer a nível hospitalar e na assistência médica/medicamentosa capaz para que o nascimento de nosso filho(a) se processasse com segurança, com higiene e o devido apoio das equipas médicas vocacionadas para a área. Em Luanda a cadeia alimentar era quase inexistente, as longas filas de rotulei “filas da fome” eram diárias; o caos estava instalado desde a independência. As lutas internas das diversas fracções do MPLA reflectiam-se nas ruas; a estrutura humana e hospitalar existentes, médicos, enfermeiros e pessoal de apoio, equipamentos, edifícios e condições sanitárias, degradavam-se dia-a-dia. Os bastantes nado mortos, a “mutilação” das parturientes por falta de formação adequada do corpo médico, a desorganização, a negligência e demais factores que assegurassem assistência digna e dignificante à mulher, eram prova provada de que nada era seguro. Para poder sair de Angola era preciso obter o salvo-conduto. Tarefa dificílima devido aos milhares de pedidos existentes e às longas filas de portugueses e angolanos que diariamente se formavam nas instalações da ex-PIDE/DGS, agora DISA (a nova policia secreta angolana), sitas na cidade alta. Neste cenário a corrupção passou a ser o lema e, pela primeira vez, soube o que foi corromper. Mas o fim justificava os meios e largas centenas de pedidos foram ultrapassados e minha mulher embarcou em tempo bastante útil. Estou só. Resido no Bairro Vila Clotilde, na Rua D. António Saldanha da Gama, no 5º andar do prédio da D. Amália. Vivo aqui desde Agosto de 1975, vindo do meu bairro de sempre, o Bairro de S.Paulo. Do alto deste andar assisti, mais ouvindo que vendo, devido à longitude do local, à proclamação da independência de Angola realizada no Largo 1º de Maio, mais tarde denominado de Praça da Independência, às 00H00 do dia 11de Novembro 1975. Pouco passa das 20H00 quando batem com alguma intensidade e insistência na porta do apartamento. Estranho pois não aguardo alguém e principalmente àquela hora, apesar de ainda ser cedo. Abro-a e deparo com a minha vizinha, D. Otília, que com ar preocupado e um brilho humedecido no olhar me pergunta se estou a ouvir as noticias. Respondo que não, que tenho o rádio desligado. Aflita diz-me baixinho …é que estou a ouvir o noticiário e ouvi agora que muitos bancários do B.P.S.M. vão ser expulsos acusados de “sabotadores da economia angolana”. E entre eles ouvi o seu nome... Fico perplexo com o que ouço e respondo nada saber sobre o que de “errado” terei feito para merecer “honras” de abertura de noticiário e logo com “Expulsão” e “Sabotagem”. Vou com ela até ao seu apartamento para ouvir se a noticia ainda está no ar, mas já tudo tinha sido transmitido. Acalmo-a, sossego-a, agradeço a sua preocupação e regresso ao apartamento. Visto-me em condições, pois estou apenas de calção. Desço e arranco no Ford Anglia Deluxe que meu pai deixou e desloco-me até casa de um companheiro do banco, tendo já lá encontrado outros. Aí tenho conhecimento do essencial da noticia transmitida ...tinha sido lido um despacho do Primeiro-ministro, Cmda. Lopo do Nascimento, que decretava a expulsão de uma trintena de bancários do B.P.S.M. baseado num despacho qualquer do Ministro das Finanças, cda. Ismael Gaspar Martins, dando-nos 72 horas para abandonar Angola... Contas feitas tinha(mos) que embarcar no avião de 3ª feira, dia 22 de Novembro 1977. Os bens móveis, imóveis e financeiros ficavam e eram pertença do governo da R.P.A., ou seja, do povo angolano :)), segundo a noticia. E para ênfase e politização doutrinal contra os ainda “resistentes colonizadores,” o locutor achou por bem dar-nos o cunho de “sabotadores da economia angolana”, embora esse não tivesse sido o teor do despacho como comprovamos no dia seguinte através do Jornal de Angola [ex-Província de Angola). Mas ficava sempre bem dizer aquelas “atordoadas” e o povo continuava a ser “alimentado” no ódio contra os portugueses, mesmo que apenas fossem trabalhadores, como era o nosso caso, continuando assim distraído das realidades existentes tais como a deterioração e carência generalizada dos bens de primeira necessidade que no dia-a-dia se alastrava, do desvio dos recursos angolanos para Cuba, da instalação de uma nova burguesia, etc. Nenhum de nós soube esclarecer ou entender o que se estava a passar pois todos estávamos surpreendidos com a noticia. Como nada mais se podia adiantar ficou estabelecido que no dia seguinte, Domingo, encontrar-nos-íamos de forma mais alargada para obtermos mais elementos que nos possibilitassem alguma análise a fim de desencadearmos as diligências necessárias junto da embaixada de Portugal. Domingo, 20 de Novembro Ficamos a saber da verdadeira razão que se encontrava por detrás do despacho exarado por Lopo do Nascimento. Tinha a ver com a resistência que acerca de dois anos mantínhamos com o governo da R.P.A. em que negávamos entregar a filial do B.P.S.M. em Luanda, sem autorização da nossa Sede em Portugal. Com este procedimento, tomado após a independência, não deixávamos o banco ao abandono, não permitindo assim a sua ocupação, não enfileirávamos o quadro de pessoal de outros bancos tomados pelo governo e mantínhamos o vínculo laboral ao B.P.S.M./Lisboa que tinha que encontrar uma solução capaz para os seus trabalhadores que tinham ficado em Angola. Com o decorrer dos meses alguns dos nossos companheiros “passaram-se” para a banca nacionalizada, mas a maioria mantinha-se fiel à sua legítima entidade patronal, o B.P.S.M., e só “entregariamos” a chave da filial quando tivéssemos orientações de Lisboa nesse sentido. Como essas orientações nunca nos foram dadas ao longo desses dois anos, a "Expulsão" foi a forma encontrada pelo Governo da R.P.A. para por cobro à “rebeldia.” E numa área fundamental da economia financeira que é a banca, não foi “difícil” encontrar a famosa fundamentação de “Sabotadores da Economia Angolana”, transmitida pelo locutor da Rádio Nacional de Angola. Nós … “sabotadores”. Nós que ficamos em Angola apenas para continuar a trabalhar, para ajudarmos ao crescimento da nova nação africana nascida em 11 Nov. 1975. Nós que nunca fizemos qualquer tipo de reivindicações, mesmo quando, com o passar dos meses, vimos chegar a Luanda portugueses, e de outras nacionalidades, com o estatuto de cooperantes, com vencimentos/ transferências e outras condições de acesso a bens da cadeia alimentar bem superiores. Mas era um facto que não abdicávamos dos princípios leais, profissionais e éticos de ligação à entidade empregadora. As partes que se entendessem que depois cada um de nós resolveria o que de melhor entendesse para os seus fins e objectivos. Enquanto aguardávamos que Lisboa produzisse alguma decisão, e face às diversas pressões que estavam a ser sobre nós exercidas, constituímos uma “Comissão de Defesa dos Direitos dos Trabalhadores do B.P.S.M. em Angola” que tinha por função representar todos os trabalhadores do banco junto das entidades político/financeiras angolanas. Foram dois anos muito difíceis em que todos os dias a vida estava por um fio. Alguns de nós fomos agredidos, casas assaltadas e carros roubados, a fim de ser criado um clima de medo, um estado psíquico de ansiedade, de insegurança, que tinha como objectivo forçar-nos a abandonar o processo de luta e, ou saíamos de Angola, o que se tornava bastante difícil, ou entregávamos o banco, o que nunca o faríamos. O Ministro do Planeamento e Finanças anterior, Saidy Vieira Mingas, já tinha tido uma tentativa de nos fazer ceder quando numa reunião por ele promovida nas instalações do Banco Nacional de Angola nos procurou atemorizar, achincalhando-nos num português bem vernáculo, linguagem imprópria para um ministro “delfim” de Agostinho Neto. Mas para quem tinha aguentado a pré e o após independência de Angola, com todos os seus sobressaltos:»» carências de vária ordem; banditismo; fome; o desmoronar de quase todas as estruturas sócio/económicas e do aparelho produtivo; a invasão, ocupação e destruição de uma boa parte do parque habitacional de Luanda; a perseguição e “desaparecimento” de membros pertencentes à O.C.A. (Organização Comunista de Angola), um grupo fraccionista; a troca da moeda, escudos angolanos pelo kwanza; a contra-revolução de Nito Alves; o julgamento dos mercenários realizado no “tribunal revolucionário” instalado no antigo Palácio do Comércio, etc., etc., as ameaças não surtiram efeito, pois todos estávamos mais que bem preparados para aguentar aquelas ou quaisquer outras. Com o assassinato de Saidy Mingas em 27 de Maio de 1977, aquando da intentona de Nito Alves, foi o seu sucessor que em 17 de Novembro exarou o despacho nº 92/A/77, que "legitimou" a intervenção de Lopo de Nascimento através do Decreto nº 45/77, de 19 de Novembro, decretando a nossa expulsão. Da reunião de Domingo ficou assente que no dia seguinte apresentar-nos-íamos no nosso local de trabalho, filial do B.P.S.M. sita na Avª 4 de Fevereiro, ex-Avª Paulo Dias de Novais, ver-se-ia o que aconteceria e só então procederíamos em conformidade com a situação existente. E LIDO O DECRETO DE EXPULSÃO DE ANGOLA [ continua ]
Comments:
Olá Mano
Faz uma fase da tua/nossa permanência em Angola. Enquanto milhares de portugueses colocavam os seus pertences em caixotes e rumavam à chamada Metrópole, outros ficaram tentando ajudar um país no seu alvorecer das cinzas de uma luta fratricida em que o "inimigo" já não era o apelidado de colono mas sim irmãos na cor e sangue angolano. A vossa fidelidade aos princípios que vos nortearam, de estarem ligados umbilicalmente à casa mãe, teve como consequência a vossa colocação na lista negra, como sabotadores da economia angolana, como se vocês não estivessem a laborar normalmente, mas de portas cerradas impedindo que a economia angolana ficasse estagnada por isso, valeu-vos a expulsão. Como são as coisas. Nessa época os bancos foram nacionalizados, hoje cada vez mais se abrem bancos em Angola sem qualquer vínculo ao Governo. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades - já dizia o José Mário Branco. Ficou-vos, mesmo abandonados lá pelo BPSM, de nunca terem abdicado e rejeitado o facto da banca por vós representada ser portuguesa e assim continuar a ser enquanto não chegasse directrizes da sede a dizer-vos o contrário. Saíram, mas saíram de cabeça levantada, pois ao contrário da politiquice da época que tudo deram de mão-beijada, vocês nunca deixaram que as ameaças vos intimidassem pelo facto de continuarem até ao fim de serem um pedaço de Portugal em terras africanas. São com temas como este, que se faz a história de um momento negro da nossa estória. Abraços.
Olá mano,
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só agora, depois de com a publicação da parte II ter encerrado mais este capitulo da m/vida, e assim "quase" toda esta estória ser visivel, é que, indo de encontro ao que escreves, posso acrescentar que todos nós, os que lá vivemos e sofremos todas as vicissitudes do antes e do após independência, os que vieram e os que ficaram, é que somos os únicos e verdadeiros historiadores de tudo quanto no terreno se passou. Dá-me "gozo" lêr os novos historiadores/romancistas que editam livros como cogumelos sobre Angola e o antes e depois, sem nunca lá terem estado e vivido as coragens, os medos, as angustias, os heroismos, as incertezas e a trágica demanda de portugueses e angolanos para um novo rumo, para uma nova pátria de acolhimento. Mas a vida é assim. Naquela época era quase imperativo que todos os portugueses que não "alinhassem" tivessem, mais cedo ou mais tarde, que ser expulsos e/ou presos e desaparecidos, pois éramos os olhos, ouvidos e vozes que poderiam criar estigmas comparativas entre o antes e o depois. Mais temas deste género irei escrevendo à medida que o tempo fôr passando, relatando factos em que tenha intervindo, quer de forma activa, quer passiva, e que deles "entenda" lembrar-me. Apenas para que fiquem os meus registos, as minhas memórias. Abração << Home |