terça-feira, 31 de maio de 2011

 

R.I. 21 «» a Recruta [ II/III ]


** Otis Redding »« Amen **


» os exercícios «
Todos os outros exercícios como flexões; corrida livre; correr e saltar o muro com a arma a tiracolo; rastejar de costas e de peito por debaixo de arame farpado e outros semelhantes sempre os fiz sem qualquer dificuldade.
Um exercício que mexeu comigo, talvez por ser de ordem mental, foi um em que disseram para entrarmos num lago totalmente vestidos e calçados, para além de se ter que transportar a arma. Como nunca tinha entrado vestido e calçado para debaixo de algum chuveiro ou quando para dar uns mergulhos, causou-me impressão ter que cumprir essa ordem. Para mais quando a água do lago era barrenta e de cheiro pestilento devido a ter alguns detritos para causar o choque pretendido. Penso que o exercício teria a “carga” de eliminarmos barreiras psicológicas para que no percurso da vida militar estivéssemos preparados para enfrentar as diversas diversidades a enfrentar do meio ambiente.
Após entrados no lago teríamos que nele caminhar mas levando sempre a arma acima da linha de água a fim de não permitir que ela tivesse contacto com a água, tornando-a inoperacional. Com a água acima da cintura o exercício ficaria completo quando no término do lago atravessássemos um túnel de bidões (soube depois que teria cerca de três metros de comprimento). Chegados ao inicio do túnel o percurso teria que ser feito a rastejar devido ao reduzido diâmetro dos bidões. Após ter penetrado verifiquei que os bidões apenas tinham água até metade do seu diâmetro por estarem situados acima do nível de água, só que a determinado ponto do percurso a água barrenta e pestilenta chegava quase à parte superior do interior do túnel e tínhamos que nos lembrar da recomendação de que a arma teria que ter o mínimo de contacto com a água. Para que isso acontecesse a arma teria que naquele momento ser elevada até tocar no interior superior do bidão e como esse espaço só dava para a arma ou para o rosto, este apenas para a função de respirar, a decisão só podia ser uma, imergir. Visualmente calculava-se a distância que teria que se percorrer em imersão [era uma distância curta] inspirava-se o máximo de ar possivel, imergia-se e fazendo força e pressão com os tacões das botas nos sulcos dos aros dos bidões arrastávamo-nos até ao momento em que se pensaria emergir com segurança. Se algum não enchesse bem de ar os pulmões ou calculasse mal o momento de emergir para respirar era certo que engolia alguma daquela água barrenta e nauseabunda ficando aflito. Nessa aflição voltava a ingerir mais água e em desespero “afogava” a espingarda. Na saída do túnel os instrutores verificavam o estado da arma e se esta não estivesse conforme o entendimento deles, que não sabíamos qual era, aplicavam ao recruta uma super G.A.M. que o arrumava de vez, além de ter que ainda ir ao pente zero.
O que não percebi foi a “mecânica” do túnel estar meio cheio no inicio, de estar quase cheio a mais de meio do percurso e depois voltar ao normal de meio cheio.
Tiro ao alvo na carreira de tiro, tiro técnico, aulas teóricas aliadas à prática, técnicas de observação, uma ou outra de camuflagem e desmontar e montar a G3, faziam também parte da instrução e estive sempre em nivel alto nas suas execuções.

** flexões e espingarda automática FN**

**espingarda Mauser 98K e espingarda automática G3**


» a injecção de cavalo «
Penso que terá sido na segunda semana que brutalmente nos “mimosearam” com a chamada “injecção de cavalo”. Segundo os cânones aquela injecção “milagrosa” ir-nos-ia proteger de todos os males e maleitas conhecidas e das que ainda estariam por “inventar”. Que ficaríamos mais imunes aos mais variados tipos de febres, sendo um beneficio para a nossa saúde. Só nos faltou ouvir, a exemplo do dito em 1961, mas pela parte contrária, que ficaríamos imunes às balas do “IN”.
Encaminhados para a enfermaria mandaram que fizéssemos filas de seis/sete, para tirarmos a camisa de trabalho, ficando em tronco, e enquanto um enfermeiro!! espetava a agulha na zona dorsal outro vinha e seringava o liquido. Ou o liquido era grosso ou a agulha era para “cavalos”[daí a expressão de “injecção de cavalo”] o certo é que o conjunto da acção provocou uma dor estupidamente brutal. Alguns companheiros desmaiaram quase no imediato enquanto outros caíam fora da enfermaria devido ao sol e à dor. A outros deu-lhes febre de tal ordem que estiveram alguns dias em cuidados na enfermaria.
Conclusão, a tal injecção que eliminava todos os males do mundo começou logo a ser nefasta para alguns companheiros.

» acção psicológica «
Durante todo o tempo de recruta eram dadas bocas foleiras de “és uma amélia”, “não sabes fazer nada de jeito”, “seus nabos”, “seus meninos da mamã” e outros ditos e mimos que nos feriam o amor-próprio, mas tínhamos que aguentar aqueles disparates gratuitos. Por vezes, quando estourados após um dia de duros exercícios e já a dormirmos que nem justos, lá vinham os “algozes” que entrando na caserna em alta berraria mandavam-nos formar como estivéssemos. Saíamos todos atarantados pelo brusco despertar e já noite bem dentro um pelotão, ou toda a companhia, a tiritar do frio e da humidade formava para ouvirmos umas toleirices sem nexo algum, mas era da praxe. Riam-se, perguntavam o que estávamos ali a fazer, mandavam-nos destroçar e regressar imediatamente à caserna. Outras vezes, nessas o gozo era mais completo, também aos gritos e berros mandavam-nos sair das casernas e estivéssemos como estivéssemos aplicavam-nos preparação física e lá estavam cerca de trinta e tal parvos, se se tratasse apenas do pelotão, a serem mandados por uns tipos que não conhecíamos de lado algum e que faziam de nós umas autenticas marionetes. Mas era a recruta, éramos mancebos, e para além de puderem ser praxe também poderiam ser testes para verificarem psicologicamente o nosso comportamento, a nossa reacção, a nossa disciplina.

** com o Trindade **


» a semana de campo «
Na semana de campo montamos tendas de lona e comemos durante todo o tempo, e pela primeira vez, rações de combate tendo bastantes de nós ficado com o estômago “estourado”. É que para além de nunca a termos antes comido, também a ração de combate não era igual para todos. Nós, os recrutas, tínhamos umas de baixa qualidade e diversidade, enquanto os sargentos e oficiais tinham outras com mais diversidade e qualidade.
O acampamento foi montado numas matas onde perto passava um rio, ou riacho, e havia também uma lagoa. Fiquei a saber que toda aquela área era a destinada à semana de campo do R.I. 21 e também da E.A.M.A.

** ração de combate **


Nessa semana muitos dos exercícios práticos e técnicos adquiridos durante a instrução foram aplicados. Atravessamos em largura e comprimento os cursos de água, “chafurdamos” na água barrenta, aprendemos a fazer progressão de forma ordeira, sem ruído, a emboscarmo-nos, como reagirmos a emboscadas, a tentarmos “ler” algumas pistas deixadas pela possivel passagem do “IN”, etc, etc.

** na semana de campo **


Numa das emboscadas há uma pequena estória para contar.
O meu pelotão foi dividido em dois grupos sendo um o grupo do “IN” e o outro da tropa portuguesa. A questão era saber como ambos os grupos se portariam e reagiriam numa emboscada, sendo que no caso a emboscada seria desenvolvida pelo grupo “IN”, ao qual eu pertencia. Daí o facto de poder e saber contar o acontecido.
Os “maiorais” esboçaram o plano no mapa e qual o raio onde a acção se desenrolaria. O grupo militar foi mandado avançar e teria que penetrar numa das matas existentes mas não sabendo em que local do percurso estaria o “IN” emboscado. Entretanto já o meu grupo “IN” tinha antes saído do acampamento a fim de prepararmos e montarmos a emboscada. Pela primeira vez “senti” que estava num cenário de guerra a sério, devido a todo o envolvimento. Com o passar do tempo o silêncio era tão absoluto que até me “doiam” os ouvidos. Estávamos emboscados numa pequena elevação de terreno e começamos a ver o grupo militar em cautelosa e ordeira progressão, atentos a todos os pormenores e sinais envolventes e por certo que com todos os sentidos em alerta máximo pois já sabiam que iam ser atacados, e isso devia ser terrível para eles, só que desconheciam em que momento e aonde. Deixamo-los entrar na chamada “zona de morte” e quando nos preparávamos para em surpresa os “atacar” eis que se houve um grito apavorante vindo de um dos nossos. É obvio que com o grito o factor surpresa virou-se contra nós tendo o grupo militar reagido prontamente e lá se foi a “emboscada”.
O que é que aconteceu para aquele grito ter surgido e ter abortado a emboscada!.

» o ataque das Kissonde «
Um companheiro “IN” pura e simplesmente estava a ser mordido por algumas kissonde, a formiga vermelha guerreira carnívora que tudo, ou quase tudo, devora na sua passagem.
Ao ter-se estatelado no solo teve o azar de por aquele local estarem dispersas algumas dessas formigas que pura e simplesmente o atacaram penetrando através da farda de trabalho, mordiscando-lhe as carnes.

** formiga Kissonde **


Ter-se-á apercebido do que realmente lhe estava a acontecer e foi quando gritou em desespero ao mesmo tempo que ia tirando toda a roupa e calçado, tendo ficando completamente nu, enquanto o resto do grupo, instintivamente, desaparecíamos num ápice daquele local. Nunca até então, nem depois, tinha visto alguém a despir-se e a descalçar-se com tanta rapidez.
Nem o Jean-Louis Trintignant no filme “Un homme et une femme”, quando começou freneticamente a tocar na bateria, fê-lo com tanta rapidez no momento em que a bela Anouk Aimée se despia por detrás de um lençol dependurado e a contra-luz recortava a sua formosa e delineada silhueta, como aquele meu companheiro de emboscada. Em relação ao filme considero ter sido um belo filme a preto e branco e vi-o no Miramar em 1967/8. Aliado ao filme uma notável banda sonora fizeram com que ambos tenham ficado bem gravados na minha memória. Filme marcante e nostálgico de uma linda época, a da idade da inocência, do qual deixo um pequeno sketch, assim como a banda sonora.
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»» antes convirá fazer “stop” ou baixar o som do fundo musical do tema ««



Voltando à kissonde a sorte daquele companheiro e, por assim dizer, a de alguns de nós, foi que eram apenas algumas dezenas de desgarradas que por ali andavam. Se fosse o exército de milhões delas por certo que não tivesse tempo para escapar com vida e talvez um ou outro de nós também. Foi conduzido para a unidade já que no local apesar de se terem sacado muitas das que na sua carne tinham ficado com a cabeça enterrada, o certo é que teria que ser tratado convenientemente e psicologicamente. Todos os que vivemos a situação ficamos apreensivos com o sucedido e diversos pensamentos terão ocorrido a cada um. Aquele momento foi mais uma lição para o futuro percurso militar de cada um de nós. Também foi a primeira vez que ouvi falar dessa formiga como kissonde pois conhecia-a como "marabunta" de um filme com Charlton Heston que anos antes tinha visto nos SMAE, em que verifiquei que a sua ferocidade era fulminante.
No acampamento, depois do susto, a risota e a laracha foram um nunca mais acabar mas felizmente a semana de campo estava a findar e regressamos à unidade com o espírito de grupo reforçado.



» o companheiro “passado” «
Uma outra situação totalmente desagradável passou-se com o Júlio, meu companheiro de companhia, não de pelotão, e com ligação familiar. Andava tão "passado" que um dia, devido a uma ordem que lhe terá parecido ser injusta, “perdeu” a cabeça dirigiu-se ao gabinete do capitão “fantasma” e à entrada do mesmo pegou a G3 pelo cano e bateu com a coronha na parede até a partir. Tudo foi demasiado rápido e o Júlio estava possesso. Ainda entrou no gabinete e mandou-se contra o capitão mas rapidamente foi agarrado e levado para uma cela. Soube-se no dia seguinte que iria ser feito um inquérito para se averiguar o que se tinha passado mas os factos reais ocorridos eram demasiado graves para que não houvessem dúvidas de que a disciplina militar iria ser dura e implacavelmente aplicada. Tentativa de agressão a um oficial e danificação de um bem militar, a G3, seriam motivos mais que fortes para um castigo exemplar a esse meu companheiro de ligação familiar. Esteve alguns dias preso mas felizmente para ele o pai pertencia aos quadros do exército [estava muito bem relacionado em Luanda com altas patentes militares e civis] soube mexer-se e o Júlio foi solto como se o “caso nunca tivesse acontecido”.
Mais tarde, já quando na mesma especialidade que a minha, radiotelegrafista, o Júlio voltou a fazer das dele, tendo passado a maior parte desse tempo preso. Era um moço problemático, uma espécie de objector de consciência, e como não se livrou do alistamento terá ficado “passado”. Soube mais tarde que tinha conseguido dar o “salto” para a Suíça mas após o 25 de Abril regressou a Portugal e foi amnistiado.

» os comandos «
Um dia as companhias de recrutas foram mandadas formar. Após formadas apareceram um capitão e penso que um cabo dos comandos que teceram loas aos comandos, às virtualidades de se ser comando, que “os comandos não são melhores nem piores, são diferentes”, etc., etc. Depois de bastante dissertarem sobre o ser comando e os valores que defendiam foram as companhias mandadas abrir fileiras e à voz de “quem se quiser oferecer como voluntário para os comandos que dê um passo em frente” fiquei com a impressão que na minha companhia, nomeadamente no meu pelotão, deu-se foi um passo para trás. Mais tarde soube que alguns dos que se tinham “oferecido como voluntários” estavam a levar “tareia” a sério nos vários exercícios e “loucuras” dos comandos, acabando alguns deles por desistirem e outros por não terem demonstrado aptidões físicas e mentais para pertencerem àquela tropa de elite.



» o primeiro pré «
Não me lembro bem mas penso que o primeiro pré que recebi não dava para a gasolina (ida e regresso) a Luanda. Então com os descontos que inventaram para “isto” e para “aquilo” tive sorte, e quase todos nós, em não ter ficado a dever ao exército.
Procedimentos para se receber o pré. A companhia preparou-se e alindou-se como se fossemos para um baile debutante. Após formada verificamos a existência de uma mesa montada na área da companhia onde estava o sargento e mais outro [não me lembro se seria o capitão ou um outro oficial]. Fomos sendo chamados pelo nº de ordem, saíamos da formatura em passo de meia corrida [trote] e perfilávamos perante os donos do "kumbu". O sargento perguntava pelo nome, confirmava se o mesmo correspondia ao nº pelo qual tinha chamado, dizia qual o valor do pré e quanto iria receber (devido aos tais descontos que não se percebia o porquê), contava o "kumbu" à nossa frente e mandava assinar uma folha com o valor que pensávamos que seria igual ao que tínhamos recebidos. Recebíamos com a mão direita, passava-se de seguida para a mão esquerda, batia-se a continência, rodava-se e regressava-se à formatura enquanto outro companheiro já vinha para os mesmos procedimentos. Quando toda a companhia tivesse recebido é que seria dada ordem para destroçar, finalizando-se aquele pomposo cerimonial.
Com tão "vasta fortuna” a reacção foi a de deixar uma boa parte na cantina, adquirindo um ou outro produto de maior necessidade e bebendo umas "bejecas". O esquema estava muito bem montado e o pré ficava de novo no exército. Daí o facto de nem para a gasolina dar.

» a fuga dos galináceos «
Um acontecimento hilariante e de algum surrealismo foi quando aconteceu a “fuga dos galináceos decapitados”.
Numa manhã, em que por certo o almoço deveria ser entre arroz ou massa com frango, os escalados para prestarem serviço à cozinha do refeitório cortaram o pescoço a várias dezenas de galináceos e atiraram-nos para uns grandes tachos que se encontravam junto à cozinha e refeitório, não tendo tapado os mesmos. Ou porque ainda não estivessem totalmente mortos ou num último estertor conjugado com a acção do calor, alguns bastantes galináceos “esvoaçaram” dos tachos numa correria louca pela parada. Passado que foi o primeiro choque/impacto de se verem galináceos decapitados ou com os pescoços dependurados a correrem desenfreadamente, ouviu-se uma risada geral ao ver-se os faxineiros feitos “loucos” em correria tipo “Charlot” atrás dos moribundos, mas ainda não totalmente mortos, galináceos. A correria das aves foi curta tendo algumas delas caído para o lado percorridos alguns metros.
O ambiente no almoço desse dia foi “pesado” tendo muitos de nós não conseguido almoçar já que o “filme” do que tinha acontecido ainda estava bem presente e uma onda de solidariedade para com os galináceos decapitados corredores foi criada, sentimento esse que provocou um nó no estômago difícil de desatar para aquela refeição.



[continua]




sexta-feira, 13 de maio de 2011

 

R.I. 21 «» a Recruta [ I/III ]


»»Clicar para Tocar««
** Jimi Hendrix »« Purple Haze **


Passavam das 18H00 quando franqueei a porta do Regimento de Infantaria 21, em Nova Lisboa, no dia 31 de Janeiro de 1971.



O jovem civil das praias de Luanda tinha ficado à porta da unidade.


No lado de dentro surgiu o jovem recruta que tinha sido ALISTADO para todo o serviço militar.

Foi assim que terminei o tema Luanda/Nova Lisboa [IV], “odisseia” em quatro actos sobre a viagem e “loucuras” que eu e mais três amigos da vida civil efectuamos quando incorporados para integrar o primeiro turno de Instrução Básica Militar em Nova Lisboa.
Para encerrar este capítulo da m/vida irei procurar descrever como foi a recruta no R.1.21.
Aguardo, à medida que vá escrevendo, que consiga “desalojar” do baú das memórias algumas recordações que façam com que aqui deixe espelhado esse período compreendido entre 31 Janeiro [Domingo] a 3 de Abril [Sábado] de 1971, dia em que fui considerado como “Pronto da Instrução Básica”.



» o inicio «
Entrado à porta de armas fui conduzido ao sargento de dia tendo-lhe apresentado a “credencial de apresentação” [penso que seria este o nome], sargento que chamou um cabo ao qual deu instruções para me conduzir para uma caserna, caserna na qual encontrei alguns conhecidos e amigos da vida civil; o Júlio, o Trindade, Lemos, Fernando [não o da “odisseia”] e mais um ou outro.
O cabo disse-me qual a minha a m/cama, mandou umas bocas “foleiras” e zarpou. Fiquei mais ou menos satisfeito por a minha cama ser a debaixo no beliche mas essa satisfação desapareceu durante a noite quando comecei a “levar” com o pó e outras partículas que caíam da cama de cima. Após uma noite “meia maluca”, desde o colchão a dar-me cabo do corpo [aquilo de colchão só tinha o nome], ao facto de ter que guardar os meus pertenças num cacifo com outro, onde quase nada cabia, como ter de suportar “odores corporais” e “gasómetros” que durante a noite foram “disparados” para gáudio dos autores e de outros.



Na manhã seguinte fomos acordados aos gritos e pontapés nas camas, mandados formar [como se soubéssemos o que era isso] e vestido à civil, todo “amarrotado e partido” e com o corpo com comichões, ouvi uma série de tretas e depois em fila fomos encaminhados para levantamento do fardamento; farda de trabalho e botas de sola em borracha e quico [além da pala dianteira tinha uma pala traseira para cobrir a nuca]; farda de saída, sapatos, boina e gravata; camuflado, assim como o quico, botas de cano, além de meias para todo o género do calçado levantado. Mais uns considerandos sobre o fardamento, o que ele representava, como teríamos que usar, estimar, etc., etc. e o que o exército esperava de nós.

** fardas trabalho, camuflado e de saída **


» a companhia fantasma «
Deram-me um nr de ordem e fui colocado numa companhia cujo capitão era “marado a 200%”. O fulano era tão “passado dos carretos” que designava a companhia como “companhia fantasma”, isto é, antes de estar já estava. Era vê-lo algumas vezes a comandar a companhia para a parada, prepará-la para a revista que o comandante da unidade fazia, só que o homem comandava uma companhia que ainda estava na área da própria companhia a aguardar que ele desse ordem de marcha, mas ele lá ia sozinho …””meu comandante, a companhia fantasma está pronta para a revista””… [era assim que ele apresentava na parada a companhia]. Só que como a companhia era fantasma, não estava visível. A situação era demasiado surrealista, só visto. Nessas “falhas” era o alferes que comandava a companhia até à parada onde o “passado dos carretos” continuava hirto e firme a aguardar a revista à sua “companhia fantasma”.
Nunca entendi como aquele homem ainda estava ao serviço da nação militar.



» os primeiros choques «
O primeiro choque foi ver o que chamavam de comida. Aquilo era uma mistela qualquer que de comida nada tinha, pelo menos para mim e para muitos dos meus companheiros. Mas também vi mais que muitos a “lambuzarem-se” como se aquilo fosse um manjar dos céus.



Conclusão, andei bastantes dias a não comer o suficiente e a minha salvação foi ainda ter algum “kumbu” que tinha sobrado dos “desvarios” tidos quando chegamos a Nova Lisboa, o que possibilitou andar a alimentar-me na cantina até o “ferro” acabar nos bolsos. Nesses muitos dias o que realmente “atacava” era o café da manhã composto por leite mais que aguado misturado com o que parecia ser café ou cevada e dois bons pães que barrava com uma coisa que parecia ser manteiga mas que me ajudava a aguentar até à hora do almoço, onde depois do refeitório ia à cantina. Também tive a ajuda das bolachas, biscoitos e enlatados que tinha levado de Luanda, permitindo assim amenizar alguns “apertos” que passei a ter no estômago.

O segundo choque, este com muito maior impacto que o primeiro, foi com as chamadas instalações sanitárias. Quando pela primeira vez as quis utilizar foi um choque tal que só passados uns seis/sete dias é que reuni condições psicológicas e fisiológicas para lá ir e utilizá-la. Que remédio, não tive outra solução. Nunca tinha visto nada daquilo e só o ter que estar de cócoras [à caçador] e ter que acertar no buraco era demais para mim, além de considerar nojento.

** sanita à caçador **


Talvez por influência destes dois choques, conjugados com os exercícios físicos e desgastes mentais o certo é que nos primeiros oito/dez dias emagreci bastante, entrei em fase de fraqueza e por duas/três vezes desmaiei nas formaturas, tendo ido parar à enfermaria onde rapidamente me restabeleceram. Estava com a moral em baixo e sabendo que só no fim das duas primeiras semanas é que poderia obter licença para sair de fim-de-semana, ainda mais agravou o factor psicológico. A questão passou eu saber se aguentaria até às 15H00 (hora de revista para se obter a tão desejada licença) dessa longínqua Sexta-Feira, para “correr” para a minha cidade … Luanda.
Após a primeira quinzena nunca mais passei um fim-de-semana dentro da unidade. Quando não tinha condições de transporte para Luanda, o meu “destino” era o Bairro de S.João onde entretanto tinha obtido alguns contactos de “permanência”. Mas sempre que podia era a abrir para Luanda.

*em estado adiantado na “elegância"*


» o pelotão «
O pelotão onde estava deveria ter uns 30 recrutas e só me lembro de um nome dos que o comandavam, o do furriel Gandarês, um veterano da guerra que era o individuo mais torto de estrutura óssea que alguma vez já tinha visto. Era mesmo impressionante, todo ele era curvas e recurvas. Havia também um aspirante e um cabo.

** estou por aí **


A recruta foi o que todos já sabem, pelo menos os que a fizeram. Ensinaram o que era uma formatura, o que é e o que se pretende do pelotão, que o pelotão se divide em 4/5secções [dependendo do número de soldados] e os objectivos da instrução. Tínhamos que saber perfilar pla direita, abrir e fechar fileiras, ombro arma, baixar arma, como fazer a continência, marchar, correr, saltar, rastejar, manejar, desmontar e montar as armas, etc,etc.



Nas formaturas tínhamos que estar todos aprumados, limpos, barba feita, firmes e hirtos, ouvindo com atenção tudo quanto nos tinham para transmitir. Deixamos de ter nome para passarmos a ser chamados pelo nr de ordem que nos tinha sido atribuído, ou por tu. Tu isto, tu aquilo.
Quando algum de nós se mexia, se distraia ou era apanhado a fazer “macacadas” era sabido que te tinha que “encher” umas 20/30 flexões ou, no pior dos casos, era-lhe ministrada uma severa G.A.M. [Ginástica de Aplicação Militar] que o deixava todo “roto” e sem vontade de “brincar”, pelo menos enquanto se lembrasse do castigo. A este nível nunca me foi aplicado algum castigo



» carecadas «
Durante a recruta andei praticamente com “carecadas”, isto é, a pente zero. Tudo porque não fazia alguns dos exercícios e o castigo era ir ao Miguel, o barbeiro da unidade. Como se isso me importasse. O importante para mim era não fazer os exercícios em questão e nesse pormenor sempre prevaleceu a minha vontade, para “desespero” do furriel Gandarês e do aspirante do pelotão. Esses exercícios eram o de saltar para o galho e ter que subir e andar no pórtico. Como de tolo nada tinha e de herói de quartel ainda menos, pura e simplesmente sempre me recusei a fazer esses exercícios. Era ameaçado de passar o tempo da recruta preso, da folha ser “manchada” e causar-me problemas no futuro, mas como essas ameaças nunca me convenceram a única solução de castigo que tinham era a de me mandarem ao barbeiro para a “carecada” da ordem, mesmo que o cabelo ainda não tivesse crescido desde a ultima. Por essa razão andei toda a recruta com o “melão destapado”.



Para os que não sabem em que é que consistiam esses exercícios;

» saltar para o galho «
tinha que subir a uma plataforma talvez um pouco acima dos dois metros a contar do solo e saltar para o galho de uma árvore distante da beira dessa plataforma uns 30 cm, mas cujo galho deveria estar num nível ainda superior ao da plataforma em mais uns 50 cm (meio metro). Depois de ter visto um instruendo ter saltado para agarrar o galho, bater com os pés na árvore, cair desamparado no solo e ir todo partido para a enfermaria não era este menino que iria tentar o salto. Para além doutro factor que abaixo referirei.
Esta imagem ilustra bem o exercício em causa.


» subir e andar no pórtico «
conforme imagem para além de ter que subir o pórtico tinha que andar no cimo dele. O pórtico teria uns dois metros e meio de altura, mais o meu metro e setenta e dois somava uma altura de cerca de quatro metros e uns quantos centímetros acima do solo. A largura da trave do pódio teria uns trinta centímetros. Ora estar acima do solo 4 metros e tal [era o que a minha visão dimensionava] e andar naquela estreita largura era um outro exercício para não o fazer pelo mesmo factor do do galho. E creio que se não tivesse esse problema também não faria os exercícios em causa pois de heróis mortos ou entravados estava a história cheia e de forma alguma eu iria pretender aumentar esse fatídico número.


» acrofobia «
Eu tinha uma razão mais que forte para recusar-me a fazer os exercícios acima referidos, mas nunca me passou pela cabeça pedir o documento comprovativo que justificasse ao exército essa minha “impossibilidade” racional de praticar exercícios daquele género. Pura e simplesmente eu sofria de acrofobia [acrofobia é uma doença psicológica onde se sente medo de qualquer altura, mesmo que em lugares protegidos onde não existe perigo real de se cair. Pode-se entrar em pânico, sentir-se tonturas e não se consegue olhar para o chão quando se está em locais altos, havendo necessidade de rapidamente se retirar desse local].



Para debelar esse problema tinha andado uns anos antes e durante alguns meses em tratamentos que melhoraram substancialmente esse distúrbio psicológico, pois tempos tinham havido que nem sequer conseguia estar no cimo de uma cadeira e saltar para baixo. O que meus olhos viam era um abismo infinito ao mesmo tempo que sentia uma atracção pelo mesmo, isto é, a não saída imediata do local poderia provocar com que me lançasse de forma irracional para esse abismo.



Como não tinha o tal documento comprovativo e mesmo quando fui à inspecção nem me lembrei desse factor, eu, para os instrutores, tinha era “miúfa”.
Como esse epíteto nunca me incomodou eles que dissessem o que entendessem dizer que isso não faria com que eu fizesse o que não queria fazer.
A exemplo de muitas situações na minha vida o problema não era meu, mas sim dos outros.

[ continua ]