domingo, 27 de junho de 2010

 

Luanda // Nova Lisboa [ IV/IV ]


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** The Swinging Blue Jeans - Hippy Hippy Shake **


LOUCOS ATÉ AO FIM

O tempo entretanto ia passando e a hora de irmos ao hotel buscar os sacos aproximava-se. Ao chegarmos e para a loucura ficar completa do que é que nos lembramos. De pura e simplesmente lá almoçarmos. Não tínhamos ficado verdadeiramente "traumatizados” com o que tinhamos pago pelos quartos. Queriamos ver e sentir até onde nos levaria a "panca". Era a perfeita "loucura total".
A sala de refeições estava bem composta de hóspedes. Entramos, veio ter connosco o chefe de sala, perguntou se estávamos hospedados e encaminhou-nos para uma mesa redonda, como todas. A seguir veio um empregado com a lista. Ao mesmo tempo perguntou o que íamos beber ...vinho… dissemos e uma Coca Cola, e vimo-lo a fazer um sinal para um outro empregado.
Devíamos estar mesmo “apanhados” do clima. Mais de metade do dinheiro gasto nos quartos, a ficarmos à "rasca" sem sabermos para o que dava e até quando chegaria o que sobrava a cada um para "sobreviver" nos quarteis e mesmo assim estávamos na sala de almoço de um hotel a escolhermos à lista e a pedirmos vinho. Só de loucos. Nova Lisboa e o frio já estavam a causar efeitos na nossa inteligência. Era a "cacimbada" a funcionar e ainda éramos civis.



Olhamos para os preços na ementa e só deu para rir. Aqueles preços eram um autêntico atentado às nossas pobres e desfalcadas carteiras. Mais uma vez conferenciamos para vermos o "kumbu" que tinhamos e decidimos pedir dois pratos da vasta ementa que, pelo nome, nos pareceu ser os que dariam para melhor repartir pelos quatro. O outro empregado trás a carta de vinhos e aqui foi o pagode total. Aquilo não era preço para vinho mas talvez para comprar ouro. Enquanto ríamos com a situação lá pedimos a comida e vimos o empregado a querer levantar os outros dois pratos. Dissemos para estar quieto pois todos íamos almoçar.
Como riamos à vontade verificamos que alguma clientela começou a olhar-nos com ar de reprovação, com algum desdém [esta leitura é minha], abanando a cabeça e depois enviarem o olhar para o chefe de sala. Este, de forma discreta mas querendo ser visto, veio ter connosco dizendo-nos que os outros clientes estavam a sentir-se incomodados com a nossa postura, recomendando para baixarmos o tom dos risos e comportarmo-nos de acordo com o local onde nos encontrávamos.



Parvos com aquela intervenção olhamos para o indivíduo, serenamos um pouco, ele vira costas com ar de “dever cumprido”, olhamos uns para os outros e foi um desatar a rir com o ridiculo da situação. Naquele momento alguém foi salvo pelo “gongo”, ou ele [chefe] ou nós, pois chegou o empregado com a garrafa de vinho, despejou um pouco num copo a fim de um de nós o provar. O Henrique emborcou o conteúdo [aquilo não tinha nada] e com ar de entendido abanou com a cabeça em sinal de concordância. O empregado começou a “sujar” o meu copo e o do Carlos, já que para o Fernando era a Coca Cola, e de novo o do Henrique. Quando o vimos a retirar-se com a garrafa mais cheia que vazia e os nossos copos mais vazios que cheios, um de nós [não me lembro quem] meteu a mão à garrafa e disse que ela ficava ali, na mesa. O empregado sem saber o que fazer olhou para o chefe e vi este com o olhar a “dizer” para se retirar. Com mais esta cena fomos de novo alvo dos olhares dos presentes, que pareciam mais interessados em nós que na comida ou bebida que tinham à sua frente.
Chegou o carrinho da comida, o empregado levanta a tampa dos recipientes e começa a servir-nos. Um niquinho disto, um niquito daquilo e eu a pressentir que íamos ter outro comportamento nada "digno" para aquele ambiente. E sucedeu o que previ que acontecesse. Quando acabou de deixar “alguma coisa” em cada prato, e depois de tapar os recipientes, o empregado preparou-se para levar o carrinho. Então nós íamos pagar uma fortuna, ele deixava uma amostra nos pratos e levava quase toda a comida !!??



Deitou-se a mão ao carro ao mesmo tempo que dizíamos que não saia do pé de nós, a exemplo do vinho. O empregado tentou explicar que continuaríamos a ter a comida à disposição, mas era procedimento o carrinho sair do pé da mesa dos clientes e depois ele vinha de novo servir-nos, caso o chamássemos para esse efeito. Bem tentou explicar, mas nós não estávamos para aí virados. Dissemos não concordar e repetimos que o carrinho dali não saía. E mais, que nós nos serviríamos pois a comida era nossa e não queríamos saber de mais nada. E o ESCANDALO continuava para aquela “snob” clientela que cada vez olhava mais espantada !!! para nós. Faço lá ideia do que nos terão chamado, mas não andarei longe de ..."são meninos da capital, filhos de papás endinheirados, vêm para aqui [hotel] mas não têm modos, não sabem estar e não têm nenhuma educação. São uns selvagens", etc., etc..
Levantei-me, puxei o carrinho para o meu lado e comecei a encher os pratos. Do chefe de sala nem sombra. Por certo pensou que não valia a pena incomodar-se e deve ter saído antes que algum daqueles senhores ou madames o chamasse. Não havia nada a fazer em relação àqueles [nós] “incivilizados”, terá talvez pensado.

Acabada a refeição pedimos a conta e pagamos. Para continuarmos a chatear fizemos o máximo de barulho possível ao levantarmo-nos, arrastando as cadeiras e falando alto. Dirigimo-nos aos quartos, pegamos os sacos, saímos, colocamo-los no carro e fomos a um café. Tenho cá para mim que se o hotel tivesse uma lista negra os nossos nomes nela iriam constar. E ainda não tinham visto os quartos :)).
Demos mais umas voltas para queimar o tempo até ao último minuto da hora em que nos teríamos que apresentar. E ela chegou.
Passavam das 18H00 quando franqueei a porta do Regimento de Infantaria 21, em Nova Lisboa, no dia 31 de Janeiro de 1971.



O jovem civil das praias de Luanda tinha ficado à porta da unidade.
No lado de dentro surgiu o jovem recruta que tinha sido ALISTADO para todo o serviço militar.

Saudações e Inté




domingo, 20 de junho de 2010

 

Luanda // Nova Lisboa [ III/IV ]


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** Bonnie Tyler - Holding Out For a Hero **


NOITE LOUCA

Depois do jantar foi uma desilusão. Sábado à noite e depara-nos uma cidade morta, sem movimento, macambúzia. Poucos carros, raros passeantes. À porta do cinema Ruacaná [o mesmo nome do Hotel], meia dúzia de pessoas talvez para assistirem ao filme em exibição e bastantes militares em relação ao número quase inexistente de civis. Demos uma volta a pé pela Avª, arredores do jardim, ruas paralelas e nada de nada. Aquela cidade era mesmo do outro mundo. Não existia. Nós devíamos estar num filme de ficção. Ainda há poucas horas em Nova Lisboa e já com imensas saudades da nossa Luanda.



Para deitar era cedo, para andar parecia tarde dado o vazio da noite. Mas tínhamos que procurar uma solução para passarmos a noite ou seja, para sabermos se Nova Lisboa tinha ou não movimentação nocturna. Bares, discotecas, boites, farras, qualquer coisa tinha que ter. Perguntei a um militar sobre o assunto e a resposta foi que N.L. nada tinha de interesse, mas também não sabia adiantar muito pois não tinha dinheiro para andar a procurar situações de divertimento desse género.
O que sugeria era uma ida até ao Bairro de S. Pedro ou S. João onde haviam farras de clube e sanzala, sendo bem frequentadas por moças de cor e algumas [poucas] brancas. Questionei se eram bairros seguros e onde ficavam. Seguros eram, pois não tinha ouvido dizer algo em contrário e na tropa as coisas menos boas são logo dadas a conhecer. Ficavam na saída a norte da cidade, sendo fácil de encontrar.
Olhamos uns para os outros, encolhemos os ombros e lá fomos. Saímos da cidade e percorremos uma estrada quase sem iluminação e em terra batida. Embora escuro verificamos que paralelamente à estrada se encontrava uma via-férrea. Fomos indo e encontramos o Bairro de S. João.

** Estrada para Bo S. João **


Calmamente percorremo-lo e encontramos um largo onde se situava um clube do qual saíam sons musicais. Paramos e dentro do carro vimos o ambiente exterior. Não gostamos, pois não nos sentíamos à vontade. Estávamos deslocados, sem conhecimento do terreno que pisávamos, sem qualquer fonte de referência. Embora kaluandas um pouco vividos aquele não era o nosso habitat. Desmotivamo-nos, demos meia volta e regressamos. A euforia da noite tinha passado. Regressados ao hotel, dirigimo-nos para os quartos.

E aqui começa a verdadeira noite louca.

Uma névoa acolheu-nos quando abrimos a porta e entramos no quarto. Como horas atrás tínhamos deixado a água quente a correr e a porta da casa de banho aberta, vimos que o quarto estava envolto numa neblina quente, compacta e o ar todo húmido.
Abrimos as janelas do exterior para que todo aquele “nevoeiro” começasse a sair do aposento. E O AR GÉLIDO DA NOITE A ENTRAR.
Ainda não tinha referido mas tanto o nosso quarto, como o dos irmãos, só tinha uma cama e de casal. Até neste aspecto tínhamos sido tramados pelo recepcionista. Quarto caro, com uma cama e o individuo provavelmente a gozar com a "partida.
Na casa de banho nem com bússola se entrava. Aquilo estava um caos. Parecia que estava a chover lá dentro. Aguardamos que as condições se normalizassem o melhor possível.
A nossa vingança quente estava a virar-se contra nós.



Entretanto o cansaço da viagem e todas as emoções sentidas estavam a fazer mossa. Eu queria deitar-me e obviamente que o Carlos também. Como habitualmente, a partir de determinado ano, umas bermudas ou um calção próprio eram a minha peça de roupa interior. A t-shirt com que tinha saído deixei-a na mesma vestida e eis-me debaixo dos lençóis e da restante roupa de cama. E AS JANELAS ABERTAS E O AR GELADO A ENTRAR.
Fiz umas recomendações ao amigo Carlos, que ficou a aguardar que o ambiente ficasse mais desanuviado, para não se “entusiasmar” durante a noite, rimo-nos e um até logo pois já era Domingo. Não sei se dormi uma, duas ou três horas, ou até poucos minutos, quando me senti totalmente gelado. Estava com a sensação de continuar dentro de um frigorífico.
Liguei a luz e vi que o Carlos também batia o dente. As janelas já se encontravam fechadas, nada aberto e o frio presente. Meti-me novamente na cama e parecia uma batedeira a tremer. Puxo mais a roupa e oiço o Carlos a barafustar e a puxar para o lado dele. Quanto mais puxávamos mais frio sentíamos. Vejo-o levantar-se e acender as lâmpadas todas. Era para aquecer, disse ele. Daí a pouco sou eu que mais uma vez me levanto, visto as calças e a camisa. E meias nos pés, dois pares. Aquilo era demais. Ou estávamos doentes, ou encontrávamo-nos num pólo qualquer. Em Angola é que não estávamos. Puxa um, puxa outro, lá se levanta o Carlos para vestir também calças, meias, camisas, vai às toalhas de banho enrola-se nelas e toca a deitar de novo. Mas parecia que quanto mais roupa, mais frio sentíamos. Luzes acesas, bem embrulhados mas frios e gelados continuávamos.



A cama era de pés altos e a colcha ia até ao chão de ambos os lados. O tempo passava, o frio gelado aumentava. Os dentes já não batiam. Estávamos a caminho da petrificação. De repente tenho uma ideia luminosa [com tanta lâmpada ligada, até a da casa de banho, obviamente que a ideia só podia ser luminosa :))]. Digo ao Carlos o que penso fazer e ele concorda. Levantamo-nos que nem loucos, dividimos toda a roupa da cama e precipitamo-nos para debaixo dela. Assim embrulhados, deitados debaixo do colchão e tapados pelos lados pela colcha de certeza que derrotaríamos o frio inimigo. E assim aconteceu, pensávamos nós. E o tempo do relógio implacavelmente a passar. Nós cansados a querer dormir e o maldito frio a não deixar. Quando parecia que a solução estava encontrada, senti as costas “ensopadas” ao soalho, que era em madeira.
Pura e simplesmente o frio tinha trespassado as barreiras da colcha, o chão estava húmido do vapor da água quente e em conjugação com o calor do nosso corpo, a nossa respiração e o ar frio que se tinha instalado no quarto, originou o estado de condensação fazendo com que tudo se tivesse convertido em estado liquido. Assim sendo a roupa em que estava envolvido começou a ficar humedecida, chegando ao corpo. Solto palavrões, esqueço-me que estou debaixo da cama e dou com a cabeça numa das travessas que sustentavam a tábua do colchão. Fiquei como que paralisado e estendido. A meu lado o Carlos, que viu a cena toda, desatou a rir que nem um desalmado e saiu debaixo da cama. Ainda entontecido rolo para o meu lado e saio também daquela toca.
O Carlos, já sentado numa cadeira, continua louco de riso. Eu estava completamente perdido com tudo aquilo. Vou até à casa de banho, verifico que não me feri, mas sinto um alto na cabeça. Passo-me dos “carretos” e mando vir contra todo o mundo. Estava farto até ao alto da cabeça de Nova Lisboa. E o Carlos continuava a rir-se. O riso devia estar a aquecê-lo, pensei .



Já refeito arrumamos a cama, esticamos os lençóis e o resto da roupa e preparamo-nos para de novo nos deitarmos. Se tivesse que “morrer gelado”, ao menos que estivesse tapado. Já completamente à deriva vou para debaixo do chuveiro e tomo um banho de água quentíssima. Fricciono com o toalhão o corpo, visto de novo os calções e a t-shirt e a “fumegar” corro para a cama. Penso que deveria estar a dormir bem quando sou acordado pelo Carlos. A manhã já há algum tempo tinha surgido e ele e os manos estavam à minha espera para sairmos.
Visto-me, saio com umas olheiras de meter medo, encovado e todo partido. Embora com ar “encorrilhado” o Carlos apresentava-se com melhor aspecto que eu.
Um dos irmãos perguntou o que é que se tinha passado no nosso quarto pois teve necessidade de durante a noite se levantar e pareceu-lhe ouvir algum barulho e a falarmos alto. E está claro, olharam para mim e perguntaram da razão de tão mau aspecto. Assim como perguntaram ao Carlos. Lá esteve o Carlos a contar a “odisseia” nocturna. No princípio os irmãos ficaram perplexos com o que ouviram, mas depois desataram a rir que nem perdidos como se o assunto tivesse alguma piada. E no meio do riso disseram que éramos completamente ANORMAIS já que o quarto tinha um aparelho de aquecimento para se ligar, tipo chaufagem, se fosse necessário. Que foi o que fizeram, tendo tido uma noite bem quentinha.

** com amigo Carlos no meu casamento **


Não estava a acreditar no que ouvia. Então a solução para tudo quanto tinha acontecido no quarto tinha estado sempre a nosso lado e nós não demos NEM sabíamos dela?! A expressão que eu e Carlos provavelmente fizemos fez com que o Fernando e Henrique ainda mais se rissem. Tanto riram que não aguentamos e contagiados rimo-nos os quatro até não mais podermos.
Tinha sido uma noite de terror, louca, de perfeitas maluqueiras como a de ir dormir para debaixo da cama, banhos super-quentes e tudo o mais, quando podia ter sido uma noite de paz, bem dormida, bem repousante, bem quentinha. Tomamos o pequeno-almoço num café qualquer, metemo-nos no carro e fomos ver onde ficavam o R.I.21 e a E.A.M.A. Rondamos as unidades, fizemos paragens para verificação da zona envolvente e depois demos uma volta por Nova Lisboa a fim de a conhecermos um pouco.
Gostamos do que vimos, pois era uma cidade limpa, com bastantes e espaçosos jardins floridos, estátuas, monumentos, ruas e avenidas largas. Bastante geométrica, nas suas mais variadas formas.

[ continua ]




domingo, 13 de junho de 2010

 

Luanda // Nova Lisboa [ II/IV ]


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** Little Richard - Good Golly Miss Molly **


CHEGADA A NOVA LISBOA

A dado momento verificamos que o Sol estava a desaparecer e um tempo acinzentado começava a aparecer. Algum frio começou a entrar por uma janela meio aberta do carro. A dita cuja foi fechada, mas o ar fresco ficou. Um de nós começou a resmungar qualquer coisa como … que merda de tempo é este! Então o tempo aqui é diferente do nosso [Luanda]?! Onde é que se meteu o Sol!!
Começamos a “vêr” a coisa feia. Passamos por uma placa que dizia Alto Hama

** Morro no Alto Hama e Halto Hama **


Após mais uns bons quilómetros chegamos a Nova Lisboa. Percorremos uma Avª que devia ser a principal, pela largura da mesma e por ser dividida em quase toda a extensão por um separador ajardinado. Passeios de árvores frondosas, prédios de agradável arquitectura e de altura razoável, outros em construção e hotéis. A cidade estava a começar a iluminar-se.
Primeiro dilema … onde iríamos hospedar-nos para tomarmos um bom banho, mudarmos de roupa e devorarmos uma boa refeição. Depois a noite ver-se-ia como seria.
Demos a volta no cimo da Avª. e paramos ao lado de um jardim onde se situava uma praça de táxis. Saímos para esticar as pernas, para ter o primeiro contacto físico com aquela cidade e naturalmente fazer as perguntas a um taxista.

** Avª 5 de Outubro **


Ao sair do carro foi como se entrasse num frigorífico. O tempo não estava frio, era gelado. A primeira sensação foi de sufoco, a ideia seguinte foi a de entrar rapidamente no carro. Porra, mas de que país é esta cidade!. De Angola não é certamente, pois Luanda não é assim, "GRITEI" para dentro de mim.
Os meus companheiros começavam a bater os dentes que nem castanholas. A tiritar perguntamos onde podíamos hospedar-nos pois éramos de Luanda, não conhecíamos nada e estávamos ali porque no dia seguinte iríamos apresentar-nos como recrutas. O taxista indicou-nos uma pensão que ficava do lado de lá do jardim, que era “simpática” no custo e em condições para o que pretendíamos. Para jantar referenciou-nos um restaurante também perto [não me lembro dos respectivos nomes], que não era caro para jovens como nós que deveríamos ter pouco para gastar.
Agradecemos, entramos no carro a tiritar [lembrar que saímos de Luanda com camisas finas de manga curta e/ou t-shirts e NÃO tínhamos levado casacos ou outro qualquer tipo de agasalho] e Nova Lisboa estava a receber-nos glacialmente. Começamos a decidir para onde ir. Se para a pensão indicada ou se procuraríamos outro sitio. À nossa frente o reclamo do Hotel Ruacaná “piscava-nos” o olho.Não pensamos duas vezes. Iriamos para o Hotel Ruacaná.



Sacos fora do carro e prontos para a “GRANDE ODISSEIA”, que nós ainda não sabíamos que iria acontecer. Entramos e dirigimo-nos à recepção. Do lado esquerdo da entrada já se viam mesas com hóspedes a serem cerimoniosamente atendidos. Empregados de calça e casaco escuros, camisa branca, gravata preta de nó fino, toalhete dobrado no braço, carrinhos metálicos num vaivém de comida, foi o que vislumbrei. Mandamo-nos os quatro para cima do balcão da recepção e dissemos que queríamos pernoitar. Quantos quartos pretendíamos … dois…, já furiosos pois o que na altura queríamos era um bom banho de água a escaldar para “derreter” o gelo dos corpos.
Bilhetes de identidade para os devidos registos. Num quarto ficavam os irmãos e no outro eu e Carlos. Chaves nas mãos com a informação de onde ficavam os quartos e quando já nos aprontávamos para "abrir" pelo corredor, deu-se o “inicio da odisseia”… tínhamos que pagar no momento e libertar o quarto no dia seguinte até às 13H00, se bem me lembro.
Se estávamos GELADOS então quando ouvimos o preço de cada quarto ENREGELAMOS totalmente. Até o pouco cabelo que ainda tínhamos [havíamos cortado em Luanda à maneira de cada um e não deixar que o fizessem no quartel pois o mais natural seria ser à máquina zero para o barbeiro não perder tempo] “cresceu”, enregelou e virou não "estalactites" mas sim "estalagmites", como que perfurando o nosso já cansado cérebro.
Se os dentes batiam que nem castanholas devido ao frio, agora quase que pareciam martelos pneumáticos devido à super velocidade com que batiam ao ouvirmos o preço a pagar pelos quartos.

** Jardim Praça Salazar **


Estarrecidos retiramo-nos para o lado e conferenciamos sobre quanto cada um tinha trazido. Contas feitas tínhamos dinheiro para os quartos e para mais alguma surpresa que aparecesse [ficamos logo a pensar quanto nos iria custar o jantar, assim como o almoço do dia seguinte]. Já estávamos arrependidos de não termos ido para a tal pensão indicada pelo taxista.

nota:-Em relação à pensão foi onde ficaram meus pais e demais família quando estiveram em Abril no meu juramento de bandeira. O frio/gelo era tanto que a água enregelou nos canos tendo o proprietário que bater neles e aquecê-los para a água se descongelar.

Pagou-se o valor dos quartos e aos gritos pelo corredor que nem malucos corremos para eles. Tomou-se um bom banho retemperador, vesti-me com camisa sobre uma t-shirt, o Carlos foi camisa sobre camisa, deixamos as luzes todas acesas, a água quente do banho a correr e saímos do quarto. A vingança serve-se fria, mas no nosso caso era quente e bem quente. Os manos apenas deixaram as luzes todas ligadas e ficaram fulos quando dissemos que além das luzes tínhamos deixado a água quente a correr. Ainda pensaram em voltar para trás, mas já estávamos na rua e achamos que não valia a pena. E lá fomos a caminho do tal restaurante indicado pelo taxista. Não arriscamos noutro não referenciado.

[ continua ]




domingo, 6 de junho de 2010

 

Luanda // Nova Lisboa [ I/IV ]


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** Fire Inc. - Nowhere Fast **


Este tema tem a pretensão de descrever alguns dos momentos antecedentes e os que se seguiram desde a minha partida de Luanda até à chegada às portas do R.I.21, em Nova Lisboa, no já longínquo ano de 1971. É um relato em que procuro retratar algumas peripécias encontradas pelo caminho, quando em companhia de mais três amigos decidimos percorrer essa estrada até então desconhecida. A finalidade do tema é, a exemplo de todos quantos escrevo, o de transmitir as particularidades dessas minhas vivências, dos meus sentires, das minhas sensibilidades para os vários momentos das etapas da minha vida no “Outro Lado do Tempo”.

Devido à sua extensão o tema será apresentado em quatro partes. Assim e em cada Domingo do mês em curso transcreverei para o "Reviver Estórias" uma dessas partes. O título será sempre Luanda // Nova Lisboa, de [I] a [IV].
Dedico o tema a todos quantos como eu efectuaram iguais percursos, embora com as características dos seus próprios momentos, e muito particularmente a esses meus Amigos do Bairro de S.Paulo; Henrique, Fernando e Carlos, companheiros da aventura.
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A PARTIDA DE LUANDA


Luanda. Ano de 1970. 27 Julho. Resultado da inspecção militar feita no GAC na Avª Norton de Matos … ALISTADO para todo o serviço militar.

** GAC – Avª. Norton de Matos **


Luanda. Bairro de S.Paulo, Janeiro 1971. Em conversas com os amigos Carlos, Fernando e Henrique, estes dois últimos filhos dos proprietários da bem conhecida Foto Beleza, ficamos a saber que iríamos integrar o primeiro turno de Instrução Básica Militar, tendo como data de incorporação o dia 31 de Janeiro [Domingo], desse ano. Destino, Nova Lisboa, R.I.21 e E.A.M.A.
Com a guia de apresentação para ser entregue no R.I. 21 e após ter ouvido outro tipo de dissertações sobre a disciplina militar [Deveres e Obrigações] … não me lembro de ter ouvido “Direitos”, comecei a preparar-me para essa nova etapa na vida.
Em relação ao meio de transporte ele foi rapidamente encontrado. Iríamos no Toyota Celica do Henrique.

** Este não é o original. Apenas referência do modelo **


O passo seguinte foi sobre o que deveríamos levar em termos de roupa, calçado, produtos de higiene, etc., etc. Outro aspecto era o de combinarmos quando iríamos; que tipo de estrada encontraríamos; aconselharmo-nos em que localidade(s) deveríamos parar para reabastecimento; quantos quilómetros eram de Luanda a Nova Lisboa e outros aspectos relacionados com sabermos se o Celica “aguentaria” a viagem.

Informações obtidas e compiladas:
• A roupa e calçado que levássemos no corpo e mais um outro conjunto de muda, pois só teríamos tempo para usar a roupa do exército; a farda de trabalho, o camuflado e a farda de passeio. A roupa e calçado civil pouco uso iriam ter. Uns chinelos a mais para o banho era aconselhável e não ocupava espaço.
• Produtos de higiene apenas os essenciais e os de uso pessoal, caso escova de dentes e pente, pois os demais, lâminas e cremes barbear, desodorizantes, pasta dentífrica, sabonetes e outros do género podíamos comprar no quartel quando se acabassem os que levássemos, e eram baratos.
• De alimentos para levarmos umas bolachas e biscoitos secos, uns enlatados apenas para as primeiras impressões e não muito mais, pois o exército dava alimentação, havia cantina e sempre evitaríamos que os “amigos do alheio” fizessem desaparecer o que de melhor houvesse.
• Que a estrada era totalmente asfaltada e a distância rondaria os 700 quilómetros. Conselho principal foi o de não nos entusiasmarmos com a velocidade já que a estrada era propícia a esse tipo de “vertigem” pois dava para “abrir”, era larga, de boa condução, sem obstáculos e sem fim à vista. Que devido ao conjunto desses factores muitos nela tinham perdido a vida, “embriagados” pelo entusiasmo da velocidade. Para pararmos quando quem conduzisse sentisse fadiga e substituirmo-nos na condução.
• Que regra geral parava-se em Santa Comba para reabastecimento, desentorpecimento das pernas e comer-se alguma coisa, mas que tudo dependeria da hora que saíssemos de Luanda. Mas pelo caminho encontraríamos uma ou outra localidade, caso quiséssemos parar antes.

Face aos elementos obtidos cada um ficou ciente do que deveria levar. A questão que sobrava era decidirmos quando iríamos e hora de saída. A conversa decisiva sobre este último aspecto aconteceu no Sábado ou Domingo da semana anterior. Decisão, sairíamos no Sábado, dia 30 de Janeiro de 1971. E esse Sábado chegou. As despedidas, sacos para dentro da bagageira, uma volta pelas ruas do bairro com o Celica a “roncar” de forma expressiva [tínhamos que dar nas vistas] e eis-nos a caminho do desconhecido. Seriam umas 08h30/09H00. No dia anterior, Sexta-feira, tínhamos concordado em sair cedo e almoçarmos numa localidade qualquer do caminho.
Metemos à Paiva Couceiro, viramos para a D. João II e entramos na Estrada de Catete.
Antes da estrada de ligação a Viana visualizamos a estrutura da Filda,situada no lado esquerdo,

** aspecto da FILDA **


o cemitério novo no lado direito e o monumento ao motorista bem no centro da estrada. Abrandamos um pouco, cada um deve ter tido um momento de interiorização, de reflexão e pé no acelerador. No fundo, apesar de todas as nossas vivências, não deixávamos de ser quatro jovens [todos com 20 anos] rumo a um deserto de ideias sobre o que iríamos encontrar pela frente, quer quanto ao percurso, quer em relação ao destino final, as unidades e vida militar.
Viana ficou para trás, vimos a indicação de Catete a (x) kms e depois que Dondo ficava a outros (x) kms. Essas principais localidades ficaram para trás e à nossa frente uma estrada sem fim.

** Viana. Anos 70 **


** Catete. Estação **




O Henrique na condução, o Fernando [irmão] a seu lado e no banco de trás eu e Carlos. Passado o impacto emocional, foi tagarelar até nos cansarmos de tanto falar e rir. É sempre assim no inicio de qualquer saída. Dá-se tudo e depois é o silêncio.
Os quilómetros eram “devorados” em bom ritmo. Ainda estávamos frescos e o carro correspondia. Fomos visualizando um ou outro indício da presença próxima de pequenas povoações, passamos por uma de maior envergadura [mais tarde soubemos que se chamava Quibala]

** Quibala. Anos 70 ****


continuamos até chegarmos a Santa Comba. Do que a esta distância do tempo penso lembrar-me Santa Comba tinha à entrada do lado direito um cemitério, do lado esquerdo umas bombas e um género de restaurante. Obviamente que haviam mais habitações, mas não me pareceu ser um local de grande importância regional. Possivelmente seria mais um ponto estratégico de apoio aos que transitavam pela estrada, mas é evidente que desconhecia a realidade da zona.
Paramos, vimos quantos quilómetros tinham sido percorridos (penso que à volta de 500km), atestou-se o depósito, deu-se uma volta aos pneus, tudo ok e rumamos para o restaurante.
Perguntamos o que podíamos comer, já que para beber tinham vindo umas Nocais e uma Cola para um dos irmãos. Churrasco, disse o que nos atendeu, é o que mais sai e é a especialidade da casa. E foi o que pedimos. Aqui surgiu a primeira surpresa. Disse para sairmos com ele, contornamos o restaurante e deparamos com um terreno onde estavam umas largas dezenas de frangos. Dentro da cerca estava um ou dois empregados negros. O proprietário disse-nos para escolhermos os frangos que queríamos para o churrasco. Como não contávamos com esse pormenor de escolha dissemos que nos era indiferente e que fosse ele a escolher. Não concordou, argumentando que era norma da casa o cliente escolher o frango. Lá escolhemos os frangos (dois), vimos os negros a apontarem para os que pensavam que tínhamos escolhido, o patrão disse que não eram aqueles e foi uma algazarra de cocorocós de frangos a fugirem dos negros e nós já sem sabermos quais os que tínhamos “escolhido”.

** Santa Comba/Igreja **


No inicio achamos alguma piada mas rapidamente pareceu-nos ridículo e degradante aquele cenário. Mandamos um … parem lá isso … e dissemos querer os dois primeiros frangos que apanhassem e não admitimos resposta contrária do proprietário. Retiramo-nos para o restaurante, embora a nossa vontade fosse a de nos irmos embora e comermos noutro lado. Mas estávamos em terreno e zona desconhecidos, pelo que aguardamos pelos ditos churrascos, que por sinal estavam mais que óptimos. Após o café perguntamos se íamos bem para Nova Lisboa e que tempo demoraríamos a chegar. Que faltariam uns 200 kms e talvez fizéssemos em cerca de três horas, pois a dado momento entraríamos na zona de subida para o planalto e naturalmente teríamos que reduzir a velocidade do carro, a fim de não o “forçarmos”. Agradecemos e fizemo-nos à estrada. Seriam talvez umas 3 horas da tarde. Já estávamos a ficar saturados de não chegar.

[ continua ]